segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

passo

começará o ano e o teu corpo longe. sei que me vou alegrar com amigos celebrando a vida, os laços que o coração sustenta, a luz que o novo dia trará. sou feliz longe de ti. não é uma necessidade, uma carência, algum tipo de incompletude, o que me faz desejar o ninho da tua voz, a proximidade da tua luz, os teus braços, a tua boca. é sentir-me completo que me faz iniciar passos na tua direcção. e algo dentro me faz intuir que não precisas de mim. não serei eu a dar sentido à tua vida. juntos construímos um planalto, um espaço novo, um calor, que não existiam. acrescentamos felicidade ao mundo. e o mundo devolve-nos energia e lucidez. na aceleração da paixão bebemos volúpia e matéria de sorrisos. é como se a dor se movesse mais lenta, assombrada com a nossa obra. não nos acompanha o passo decidido, leve, que plantamos no dia. assim, alados e luminosos, avançamos no usufruto da vida. e cada dia que nasce, inédito, é um beijo nos ombros da luz.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

presença

alegrar-me durante o dia é lembrar-me de ti. quando sorrio penso no teu sorriso. se me surpreende alguma coisa, pessoa ou circunstância, penso nas palavras que te descreveriam o que me aconteceu. o teu rosto e o teu cheiro andam comigo, em imagens e sensações. umas pairando, como os sonhos antes que nos esqueçamos deles. outras habitam o coração, fazendo ninho. é sobretudo a beleza do mundo o que me institui o desejo de partilha como uma respiração, um sangue.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

tempo

Eu sou uma fruta. No ponto exato da colheita. Ao teu lado, mais, eu sou a árvore. Na dádiva permanente e sucessiva de seus frutos. Meu corpo é o caule, raízes, folhas, casca e a sombra que me completa como um conjunto coeso e útil. Tu és o homem, um Deus que cria, colore, cose, monta, ajusta. E narra. Quando me tocas, e sou fruta e árvore, retira de mim o objeto maduro, em seu ápice. Tuas mãos me tocam, sucessivas e ágeis. Destreza do passeio tátil. Solto meu gemido e torno-me gozo, grito e perda. Deixo meu estado de fruta presa à àrvore, pátria primeira, e sigo meu destino em direção à tua boca. Então, sou a ti incorporada. Eu, enquanto árvore, me preparo em vários estágios de fruta, para fazer parte do teu círculo, tua vida, meus sentidos.

atmosfera

olho para o carvão nos dedos e lembro-me do teu corpo. imagino a luz na tua pele, a forma como a sombra se refugia em cada socalco. quero tentar fixar no papel os teus contornos com o mesmo optimismo ingénuo de alguém que procurasse alcançar as estrelas. com o indicador espalhar as partículas de carvão, como fotões tornados tinta, depois de mergulhar os dedos no sol. quero conhecer a geometria do teu peito, das tuas ancas, do ventre, a textura do teu cabelo, da tua carne. descobrir de olhos fechados os caminhos da saciedade das mãos. beber em ti a luz e o cio. é tão pequeno o mundo. o céu está limpo e não vejo um único avião. fosse o meu desejo a corda de um arco e poderia disparar-me como a uma seta, atravessando os céus em velocidade e precisão. poderia dizer-te a que sabem as nuvens, dar-te um beijo com fôlego de horizonte. por enquanto, aguardo, colado ao chão. obediente à gravidade, conspiro já com pássaros, anjos e todas as coisas que voam. de noite sigo as instruções desses seres alados, ao tecer as minhas asas. deste lado do desejo, o noivado dos lábios amadurece num fruto túmido e solar.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

área

Tanto me queima o desejo, agora, nesta margem. Só tenho esta ocupação: parar, de frente ao oceano, aguardando a onda derradeira e sua espuma, tapete a honrar-te os passos. O calendário, riscado a nervos e ansiedade. Eu imploro aos ares movimento a estas velas. Prosto-me e clamo pela força de todos os ventos, que não tardes. A fogueira da saudade me consome. A fome de tua boca faz de mim uma escrava. Exauriu-me em sucessivas cenas, o dia que imaginei, em que teus olhos pousam sobre minhas carnes, certos de que estão diante de terra inquieta e prenhe. A ti pertenço, somente a ti aguardo. Em toda a extensão, tua descoberta, teu império, tuas posses.

viagem

asa da minha espuma, adorada fêmea, luz nascente, vem para perto da minha boca. quero nascer-te em suor e músculo, plantar os nossos corpos na carne do dia, desaguar em esplendor. vem, minha amada, pólen dos meus sonhos, mel e sal da minha sede, minha estrela. cavalgaremos, sem domar, os desejos mais selvagens. e com o luar escorrendo na pele erqueremos a taça das ancas, brindando ao amor e à loucura. vem acender comigo o nosso leito, uma fogueira líquida desde os sexos até ao céu. vem logo, amor do meu coração, oásis dos meus olhos, mulher.

medula

desde o primeiro beijo que habitas em mim. como pulmões de um mesmo corpo, respiramos no mesmo cosmos, contribuindo em escala humana para a plenitude do espírito e o usufruto da matéria. desde que ouvi a tua voz os pássaros parecem cantar música inefável, o múrmurio do mar é um queixume de cio, todos os ruídos conspiram numa mesma sinfonia tão caótica como bela. desde que provei a tua pele que tudo me sabe a sede de ti. desde que entrei no teu corpo que o mundo cá fora me parece o caminho até à tua boca.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

torre

No cerne, ponto final, caroço. Nosso amor em dose concentrada. Sólido, fechado sobre si mesmo, simétrico ao que lhe cobre de substância externa: a polpa, a nutrição, o álibi. Ao redor do núcleo amoroso, as relações familiares, as datas e os despropósitos. O invólucro, pele refinada e vulnerável, atende aos chamados urgentes dos sentidos. Exposto a sol e chuva vários, o corpo inteiro do amor, vaga. E resta inscrustado na pilha de fatos, fotografias e impressões. Viaja, vez ou outra, para testar os efeitos da distância. Quando está farto, jejua, teatral e lânguido. Cumula feições nobilitadas. Dramatiza gestos pontuais e trágicos. Cria um dicionário ambíguo. Nos inscreve em sua língua estrangeira. Exibe os edifícios mais altos e injeta em nós paixão aguda, que transborda. O amor em nós, são os diabos e seus pactos.

natal

Mar alto e um pinheiro iluminado. Colcha de estrelas sobre nossas cabeças. Maria e José no presépio em movimento. Vieram reis, os escritores, e as trovas repercutem pelos séculos. O nosso amor espalhado pelos ventos circulares. De vez em quando vulcões e granizos destemperam. Já nos amamos em noites de desesperos. Feras grunhindo lá fora. Veio a seca que fez deste chão, deserto. Tempos em que os corações endureciam. Águas más, ímpetos de chuvas. Mora em nós o amor anunciado. Boas novas e algumas crucificações. Somos o pai e a mãe do grão precário que humaniza. Ninho e cerca desta vida nova. O presépio se desmonta. Sigamos neste mar aberto, destinados ao acaso. Embalemos este filho até a ressurreição.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

nojo

As rosas, de outrora, pendem, viço extraviado. Ao redor do cristal, pétalas sem ânimo. Estou no centro da sala. Parece alívio. É cansaço. Visto as cores da estação. Não é coerção que me leva ao silêncio. Palavras serão apenas ruídos, distração. Nossa música continua tocando. Já tão repetida que em certos instantes, não ouço mais. Chegaste junto com os cânticos da primavera. Eu festejava e brindava à vida e confessava aos céus a minha espera. Sonhei a ti, antes que soubesse que virias. Meus votos e minha clausura, minha entrega e devoção. Homem algum habitaria meu corpo, até que ele reencontrasse seu começo e pó. No dia de tua chegada, eu pequei. Fiz da minha morada teu altar. Meu rei e deus tão desejado. Senhor dos meus sonhos, meu amado. A sala não se movimenta. Cortinas cerradas. Móveis cobertos. Só ouço o mar, na cantiga monótona. Quero ouvir outras palavras. Preciso resistir. Se eu fechar as portas, terei dito sim à tua ausência. E a morte, em mim, residiria.

domingo, 23 de dezembro de 2007

quarentena

Era quadrada. Apenas uma pequena brecha, para que a luz do sol me lembrasse da existência de Deus e seus milagres. Era uma espera. E o tempo marcado pela alternância de claridade e escuridão. Paredes. Carvão. Tempos primeiros na história. Meus cabelos cresciam. Nenhum desejo para os dias seguintes. A promessa. Trabalho perpétuo a me lançar no espaço, de onde o vislumbre do encontro me acenava. Inscrevia. E sonhava. Até que não houve mais espaço em branco. Até que não havia mais distância. Teu nome, teu nome, teu nome, teu nome, teu nome, e sol e todas as luas. O mantra, repetido a cada respiração. Até eu estar esvaziada, sem desejo e sem destino. Teu nome, teu nome, teu nome, teu nome, na caverna enquanto lá fora, já havia sinais de vida e primaveras. Teu nome, teu nome, teu nome, teu nome, a loucura e o esquecimento. Até o dia em que meus olhos se abriram e viram. A porta sempre aberta.

sábado, 22 de dezembro de 2007

mergulho

A superfície instável, balanços e certa naúsea. Um peixe amarelo saltou. Cobrinhas ágeis, em vários tons de rosa, faziam uma coreografia horizontal. Era noite e vaga-lumes intercalavam luz e sombra. De repente, comecei a entender o que me diziam os olhos daquele cachorro alegre. As flores abriam e fechavam as pétalas, aceleradas. Lembro-me, nitidamente, que as árvores se cumprimentavam, fazendo reverências. Gatos azuis sorrindo sempre. A mesa estava posta, e havia alimentos infantis em toda a extensão. Tão bonito ver os pirulitos girando, o castelo de barras de chocolate. Para cada sabor, as balas cantavam uma canção diferente. Guloseimas, de todas as cores e tamanhos. Acho que vi alguns esquilos vestidos de pingüins. Fui ao teatrinho, depois do ópio e do nosso primeiro beijo.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

sacramento

No meu esforço para ser compreendido, devo ter gesticulado demais. Talvez meus gestos desesperados e impacientes indicassem algum perigo. Estou preso a esta camisa, que é um abraço pelo avesso, um abraço de inimigo. Quero dizer com mais clareza, não atino com esse desentendimento. Ouço o dobrar dos sinos. A música segue. Algum tempo depois, a euforia na rua. Todos saúdam os recém-casados. Sou apenas um mensageiro, mas guardo na memória o olhar triste da moça escondida. Nem ela sabe ainda que retornará a esta cidade, para fazer com que o noivo desta manhã entenda meu idioma e ouvindo minhas palavras, conheça os desígnios do destino.

criatura

um ferro em brasa deixou-me marca indecifrável no ombro. antes que pudesse protestar duas garras enormes me levantaram, como a uma presa já ferida e pouco combativa. quando passei pelas nuvens, tinha-me habituado à altitude sempre crescente. quando levo a mão aos ombros, no lugar que as garras perfuraram, não encontro nada. foi-se o predador, antes de o ser. e, sobressaltado, apercebo-me que nada me impedirá de cair. com naturalidade lembro-me de bater asas, de imaginar asas, de rezar por asas. de, aflito, bater os braços como se fosse pássaro levantando voo. mas eu era homem perdendo distância do chão. caí, como uma seta cada vez mais apressada, como um fruto dos céus, demasiado longe da maturação. caí, vertiginoso e grave. e mesmo antes de sentir o chão atravessando-me os ossos, abri os olhos e levantei-me da cama, ofegante.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

ciranda

As mulheres andavam ligeiras. Falavam baixo para não acordá-lo. Eu seguia todos os acontecimentos, assombrada. Preparavam o banho daquele homem. Outras providenciavam o alimento. Acompanhei minha vó, a tecelã. Carreguei para ela alguns tecidos, lã quentinha e macia. Fizemos um leito lindo, propriamente um ninho. Ele estava ferido e olhava, desesperado, como quem procura salvação. Segui todos os movimentos das mulheres, até que ele estivesse limpo, aquecido e abrigado. Pude participar da cerimônia. Um círculo, orações murmuradas e a proteção inefável dos cânticos de minha tribo. A mulher sábia chegou. Falaram em uma linguagem estrangeira. Ele agora estava de pé e era um mundo inteiro de beleza. Meus olhos não tinham domínio. Meu primeiro choro desmedido, uma chuva lá dentro do meu peito. E o coração, percussionista desastrado. Fechei os olhos. Pude sentir a mão quente sobre minha testa. Meu marido voltara de seus mistérios. Elas seguiam o ritual: sorrisos, ruídos, canções e festa.

queda

o mundo e eu entristecemos juntos, em outono e cinzento. caem-me folhas aos pés que me constrangem a locomoção. estou despido, ao frio, de lábios gretados e dedos azuis. o vento acentua-me a imobilidade, com o seu bafo de gelo. e ainda assim não confio nas raízes, demasiado tenras e superficiais para que me alimentem ou sustenham. o solo está perto. posso cair, no tapete das folhas da minha pele, sem estrondo ou perigo assinalável. demoro a ser húmus, os pássaros desprezam os meus frutos, acumulam-se as sementes. resta-me a memória das asas, as feridas indicando onde foram arrancadas. e o eco nítido do teu calor.

eclipse

Olhos fatigados. Cansei de olhar para o céu, no aguardo de mensagens ou pistas. Teu paradeiro continua sendo um mistério. E a saudade é este estado de alerta, sem sono, sem frio, sem fome alguma. Nada me contenta. Nada me distrai. Meus pensamentos são obsessivos. Monótonos. Uma cantiga de um só acorde. Ele não vem mais. Onde estarás, meu amado? Que teto abriga teu corpo? Que alimentos saciam tua fome? Quem tranquiliza as sedes de tua alma? Não tenho voz para gritar. Nada existe, nada tem sentido. O mundo está incompleto. Posso descartar esta vida que me foi dada e já me serve. Grito, assim mesmo, grito ainda que não possas me ouvir. Eles me acusam. Sou a louca das estradas. Em todas as vilas, sabem teu nome. O céu não me responde. As águas não me levam.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

pureza


Havia. E cada um deles me prometia mundos. Traziam prendas de seus reinos. Eu era um Jesus recém-nascido, e eles vinham de longe, atravessavam ventos e desertos. A mim, tudo entregavam. Metais preciosos, finas iguarias, animais inimagináveis. Na casa espaçosa, eu, a todos recebia e acomodava. Cumpriam desafios, respondiam às minhas curiosidades sobre os lugares de onde vinham. Havia uma camaradagem entre eles. O vencedor seria honrado por todos. Passado algum tempo, os hóspedes se ajustavam ao lugar, faziam passeios a pé pela propriedade. Um ou outro se enamorou e retirou-se da batalha. Meu coração os aceitava. Todos juntos compunham uma irmandade. Era impossível negociar com meu coração. E todas as noites, antes de dormir, eu tecia a colcha que iria abrigar nossos corpos. A eles, eu poderia dar quase tudo. Meus beijos, só a ti destinados, acumulados de saudade. Já era quase igual ao infinito a soma de todos eles. Todos os beijos que eu te enviava, enquanto a colcha se espalhava pelo chão afora.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

certidão

Poderia ter sido de outro modo. E se ao invés de eu te encontrar na minha rua, nos jogos infantis, eu te encontrasse na sala, pedindo minha irmã em casamento, eu te amaria. O funcionário da biblioteca, me indicando leituras. Ou o astro popular da música, do qual eu colecionaria fotos e reportagens. Talvez o professor de matemática que me deixou compreender este mundo abstrato. Ou meu primo mais sorridente. Talvez você fosse igualzinho ao príncipe das histórias maravilhosas. Teríamos nos encontrado no trem para a Patagônia. Meu companheiro de cena, na dramatização da escola. Meu irmão e esse seria um amor impossível. Acho bonita a cena do atropelamento: atravesso a rua distraída, seu carro joga meu corpo na calçada. Estou quase morrendo e você me beija. Não morro e hoje sou sua mulher. Todas as cenas possíveis poderiam ter sido. Em qualquer circunstância, eu estaria encontrando o homem da minha vida

calor

deixa-me descalçar-te as sandálias e lavar-te os pés. farei correr na tua pele a água aquecida na lareira, perfumada com a alfazema da última colheita. deixa-me lavar-te do pó da estrada que te trouxe até aqui. nas minhas mãos os óleos para uma massagem revigorante. deixa repousar o teu olhar. aqui dentro o horizonte é coisa do íntimo. não há salteadores nem chuva, relento ou fome. deixa o teu corpo recuperar a vitalidade que lhe pertence. farei do meu peito um ninho para a diluição do teu cansaço. nos meus braços toma de empréstimo a força e a vigília, enquanto dormes sossegada. de manhã terás um banho e um beijo à tua espera. e poderás deixar o teu corpo tagarelar com o meu. há tanto que eles desejam pôr em dia.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

latifúndio

Deu-me, então, a escritura. Eu seria a proprietária, de tudo que minha vista alcançasse. Os frutos, as águas límpidas, a fartura dos peixes e ventos brandos. O mar e suas surpresas, nas noites em que o vento espalhasse desafios. Tendo o céu e suas metamorfoses, ao redor. Amostras de cada espécie, para compor as florações. Animais bondosos. Músicos, bailarinas, pintores, poetas, ourives, mágicos, atores. E também poetas. A ilha e seus habitantes ao meu dispor. E todos os tesouros, cálices e perfumes. Este homem, meu esposo, ofertou-me o reino e os súditos. Eu seria um planeta para tudo girar em torno. E a entrega de eterna vassalagem. Desfiz o matrimônio. Despi as vestes de riqueza. O oráculo exibiu meu futuro, peregrina, a procurar-te nos desertos. Deixo o posto de rainha. Sou cigana, para honrar-te. Sou a franciscana. Aquela que entrega todas as posses e parte. Sou tua noiva e meu único desejo é ter comigo o império que mora nos teus olhos.

aritmética

conheço ainda os rostos de todas as mulheres que conheci. é verdade que aromas e nomes se desvanecem. e mesmo o acelerar do coração se descompassou em relação ao ritmo da memória afectiva. se te subtrair ao conjunto de todas as mulheres fico sem nenhuma. és todas as mulheres. em ti exerço o que outros corpos me sugeriram. e esqueço na tua carne a presunção acumulada. recomeço o homem que sou. e quero apontar os homens todos que conheces. como um rio louco, que se arvorasse em mar. as águas fundas do desejo espumificam-se, minerais. se na rua um sorriso casual me fere, quero o teu ali mesmo. como quando reivindico o teu corpo, a meio de algo. se outro corpo interfere, é o teu que me sintoniza. somos uma eva, um adão, entre milhões. em nós se afirma a deflagração do tempo. e nunca sei em que lado da pele me situo, dentro de ti.

domingo, 16 de dezembro de 2007

biblioteca

Os costumes da tribo. A ti eram ofertadas tantas mulheres quanto desejasses. A elas, darias o sustento do pão e da alma. Eu deveria prostrar-me diante de tua presença, beijar teus anéis e resignar-me com nossos encontros de quinta-feira. Minhas irmãs, eu também as amava. Deram a ti os filhos que ensinei a ler. Meus poderes de criação dedicados à memória do nosso povo. Guardadas comigo as histórias e os tempos. Ao deixar o leito que abrigava nossas noites, sempre olhavas para trás, desejando ficar. Eu permanecia em tuas lembranças quando a ti chegavam, trazidos pelos ventos, a canela, a alfazema e o jasmin. Os aromas do meu quarto formando uma rede, por toda a semana. Depois do amor, para teu descanso, eu desfiava as inúmeras histórias inventadas. Escrevia de coração, o teu livro de memórias. Aprendi assim a construir mundos, imaginados e montados conforme seus planos de fuga. Minhas palavras te davam asas. E assim, todas as noites, estavas comigo, ainda que teu corpo possuísse o corpo de minhas irmãs.

sábado, 15 de dezembro de 2007

átomo

quando era criança o nome prometeu parecia-me irónico. e imaginava o que teria ele prometido ao roubar o fogo aos deuses. ao entregar o fogo aos humanos. ao ser castigado por zeus. mais tarde, achei curioso que a história prometeu agrilhoado tivesse esse nome. e não prometeu campeão dos homens, prometeu herói audacioso, prometeu salvador, prometeu e cumpriu. um pouco mais tarde, enquanto ia conhecendo as inconstâncias das paixões, desconfiava do que as grandes histórias românticas pareciam sugerir. um grande amor é um amor trágico. os grandes amantes acabam na miséria, de coração e vida arruinada, revolvendo-se na solidão e em sangue coagulado. a mim, o amor faz-me lembrar os atomistas e a sua teoria, certeira em boa medida, muito antes de se poder microespreitar a matéria. quando se dividir a matéria em partes pequenas, e as pequenas em partes menores, e as menores em partes minúsculas, as minúsculas em ínfimas, as ínfimas em nanocoisinhas, nanocoisinhas em submigalhas e estas ainda mais umas vezes, quando se chegar à partícula constituinte de tudo, ao elemento essencial, talvez se encontre o amor. é difícil acreditar que a luz, os animais, as plantas, os minerais e os líquidos, as emoções, a imaginação, tudo, seja feito de outra substância. o amor. o nosso percurso será uma desconstrução do complexo, um caminho que atravesse o turvo, o opaco, e chegue à claridade e à luz.

arena

O pêndulo ainda se movimenta. Mais vagaroso a cada instante que passa. O silêncio tem peso. Quase posso ouvir tua raiva. Andas pela casa. Procuras uma ocupação. Encontrei refúgio neste livro que leio há meses e mantenho a cabeça baixa. As letras formam um conjunto desconexo, sombras na página amarelada. Pode ser nosso último dia. Pode ser que um de nós bata a porta e deixe o outro para trás, com a alma sem conserto. Penso em Yerma. Como explicar-te que isso é amor, amor extremado. E viriam as ocupações, a me distrair de ti. Pequenos, ranzinzas, necessitados. Não quero parir e sentir dores. Não quero espalhar pelo mundo minha descendência. Nenhuma serpente vai me dissuadir. Tenho ouvidos moucos para isto tudo. Este corpo é abrigo do teu. Assim cumpro o que estava escrito. Não há mais vagas no paraíso.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

cinema

Os bonecos descansam, ao lado do pequeno cenário. Ao redor da armação de madeira, fileirinhas de lantejoulas. Cortinas feitas de fitas de cetim, em paleta variada. O universo em miniatura, composto por um sol e lua permutáveis. E as árvores, flores, riachinho, animais, barco, peixe, jangada. Dentro da casa, mínima, os livros, xícaras de chá, fruteira, cesto, mesa e cadeiras em par, janelas com tecido de estampa feliz. O astro-rei entra em cena. Abrem-se as cortinas e o trabalho afetuoso, por nós arquitetado, tem início. Com o fio do amor, nossa escrita, damos vida aos amantes atemporais. A história segue até quando a noite se entrega e descansa. Na madrugada, voltam os bonecos para o canto e nós voamos pelos ceús da ficção.

inventário

por vezes demoro alguns instantes a lembrar-me de ti. é como se acordasse sozinho. e surpreendo-me sempre quando sinto o teu calor, quando abro os olhos e estás a meu lado. algures entre o cérebro e o coração há lugar a esse equívoco. o eu julga-se só perante o mundo. deitado, no final do dia, não precisa de contar os pés ao fundo da cama para se situar. mas antes de se levantar ainda tem na ponta da língua a tabuada do singular. um, dois pés, uma, duas mãos, um, dois olhos, uma, duas pernas. é quando conta os corações, um, dois corações, que perde a conta e se lembra de procurar o ábaco dos teus mamilos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

alforria

O café exalava, um pouco depois de alguns aromas espalhados pela cozinha. Mulheres falando em voz baixa, sons de arranjo da louça e dos talheres na mesa. O início da algazarra na escola bem próxima de minha casa fazia da cama o meu paraíso. Neste dia, uma doença pequenina me deixou em paz, entre os cobertores, com direito a sonho e sono prolongados. Minha mãe, dulcíssima, fez questão de trazer numa bandeja florida, guloseimas, leite, pães, geléia de amora e outras receitas de carinho, herdadas de minha vó. Abriu as janelas do meu quarto, para que surgissem o ar e o dia, livres. Atendendo a meu pedido, trouxe a festa: folhas brancas e meus lápis coloridos. Desde pequena, já desenhava o dia da tua chegada. Eu, vestida de noiva antiga, desperta do sono. Teu beijo me traria de volta, para eu ser sempre, e ainda depois, a menina feliz de minha infância.

ombros

gosto da tua relutância, sempre benigna, em te sentares a contar-me o teu dia, vendo-me cozinhar. sei que ardes de impaciência, julgando que os legumes devem ser cortados em rodelas mais finas, franzindo a testa quando divido em cubos a posta de salmão. sei que demora menos de um instante até que bebas o primeiro gole do vinho que te servi. e não tarda muito o aroma se desprende, como algo que se desembrulhou, e enche a cozinha com o teu sorriso aprovador. cada um coloca o prato do outro na mesa e fazemos ali um brinde à abundância. de manhã partirei no barco que restaurei, numa das primeiras marés. há sempre um ou dois peixes que o mar concede. e regresso ao fim da manhã desejando que esperes por mim para o banho. os teus cabelos em cascata sossegam-me os olhos da alma.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

céu

E depois, um cansaço bom, abençoado. Imagens da tua boca, vagarosa. A cercar meus instintos. Ao redor da minha, nas bordas. Decalcando a fome, pressão forte, mordidas de brinquedo. O beijo consumado. Todas as águas livres, mar aberto. Nossa dança, uma luta. Meu corpo dizendo teu nome, teu nome, teu nome. O gozo instaurado, corpo livre depois do grito. Imagens estreladas, a imensidão. Encontro teus olhos cheios de amor puro, protegido neste quarto. Nós dois protegidos da neve disciplinada desta noite, nos encontramos na simetria do arrebatamento. O choro nem pede licença, é o exagero de vida, imensurável. O que nos reúne em celebração é amor, enquanto não há outro nome.

mercado

Eu aceito porque este é meu mundo. Mas confesso que não gosto deste glossário. Acrílico, sintético, plástico, supersônicos, alta velocidade, semáforos, neon, bits, chips, enlatados, conservantes, metrô, air bag, lanterna, holofote, digital, cartão de crédito, coca-cola, leite em pó, zinco, diamante falso, fast food, robôs, flores de plástico, produtos chineses, alucinógeno impuro, adoçantes, emulsionantes, edulcorantes, descafeinados, sardinha em lata, uvas secas. Eu gosto mesmo é de trigo, varanda, fruta fresca, árvores, rios, barcos, velas, entardecer, vaca, cadernetas, diários, máquina de escrever que faça barulhinhos, almoço em família e jantares também. Gosto mais de ser tua e de deixar as faixas e palavras de ordem na entrada da casa. Gosto do pão que fazes. Sei preparar teu banho. A casa na árvore ficou um luxo. Temos muitos cachorros e dormimos cedo. Visto as roupas deste tempo, e guardo meu vestido florido amarelo, que uso para nossos dias de amor e glória.

pólen

a tua boca na longitude do meu corpo, como dedos num mapa. ágil topógrafa da minha geografia, vais cartografando a nudez. hei-de lembrar-me de te perguntar, como quem se belisca a meio de um sonho, se é verdade a floração da pele onde tocam os teus lábios. no oásis com os teus rios e as nossas árvores enchemos o cantil. descansamos da inflamação das miragens, junto à sombra deste pomar. o desejo, zumbindo solícito no trajecto dos ramos, poliniza a nossa distância. daqui vêm-se as flores ao longo dos teus braços. e o néctar o provaremos quando me caírem as pétalas.

pergunta

Perfilados, todos os corpos têm pressa e algum receio. Verificados os pés e os ossos, conjunto maltratado e carente. Imagino o que lhes dará o primeiro conforto, o certeiro alívio. Alguns hão de querer o cigarro. Os telefones móveis inquietos, iniciarão a babélica conversa. Aquele tipo de bigodes e expressão distraída deseja imensamente ler um jornal do dia. Moças precisam de batom e perfume. Há aquelas que pensam nos filhos. O funcionário examina documentos e me esqueço. Demoro para responder sobre o objetivo de minha viagem. O que me vem primeiro estanca. Digo que estou a passeio e meu passaporte é carimbado. Vim para interromper a dor que é estar sem ti. Meu primeiro cigarro, meus filhos, meu café e jornal, amigos, banho quente, pés confortáveis, cama, sono, descanso, a conversa com minha mãe, meu batom e meu perfume, escovar os dentes. O que seja alívio para meus companheiros é também tudo que és para mim. Meu conforto, meu abrigo e meu êxtase.

chegada

passei a ferro o tecido do íntimo. um ou outro vinco, poupei-os, reconhecendo valor sentimental e documental. as dobras mais insistentes das expectativas foram alisadas, esbatidas, eliminadas. pelo menos até que o uso as faça ressurgir, nos locais habituais. tenho a louça do coração limpa e polida, a postos para a refeição vindoura. o sorriso está em flor, suas pétalas frescas acolherão os teus passos inaugurais. os olhos abrem-se para entrar o ar por toda a casa. e nos braços a seiva corre como a água do rio em que lavo os lençóis da cama.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

embarque

Pus na mala um vestido florido amarelo, de tecido levíssimo. Lá fora há inverno e chuvas velhas. Não é útil minha bagagem. É uma caixa de mágico. De onde vou retirar apenas o que te traga brilho nos olhos. Festa para teus sentidos. De uns tempos para cá, esqueci os meses e aprendi a trajetória dos segundos. Estes últimos, que me separam dos teus braços, são a eternidade. O coração já chegou, aos saltos. E antes dele, os céus que eu via lá do alto. Tudo que viveremos agora existiu primeiro nos meus sonhos.

luz

tua voz embala-me os sonhos. habituei-me a ficar mais um pouco como se fingisse dormir ainda. e a doçura das tuas palavras torna-se hera súbita. sobe pela parede até ao quarto, tão solícita como as tranças de rapunzel descem até ao chão. e se me deixas ficar mais um pouco, entras pelo sono adentro enquanto vais abrir as persianas. é então que digo o teu nome. e o teu nome é o santo dos santos, proclamado para que se instaure o amor. sabem nossos corpos do sacerdócio que nos ensinam. e somos aprendizes promissores.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

persianas

Teu caminhar é decidido. Com toda a delicadeza deixas o quarto na penumbra. Lá fora, coisas curiosas emigram. Ganhamos uma área protegida. Teus olhos me tornam prisioneira. Sabes exatamente o que fazer para que meu corpo fique assim, sem vértebras. Seios e pernas reagem e aguardam. Conheço a ação dos teus braços. Tenho pressa. Quero os teus beijos gulosos, que me fazem alimento de tua sede tão antiga. Os gestos bárbaros me provocam. Mordo os lábios e de olhos fechados, deliro. Digo sim, com minha pele eriçada. Sou só desejo e vôo.

verão

era como se as folhas das árvores todas do mundo cobrissem o chão. caminhávamos sobre esse infinito manto de retalhos, de cores fortes como as de um por-do-sol ou de um coração em delírio. os pássaros expostos nos ramos das árvores despidas fingiam-se invisíveis. os nossos passos levantavam um leve rumor e iniciavam redemoinhos de vento e folhas. trazíamos dentro de nós o amadurecimento dos frutos, como se estivéssemos prenhes. o horizonte ardia, numa imprecisão de miragem. e quando acordei cheirava a sumo de caju e havia flores pela casa. no teu corpo um vestido leve. e as folhas escondendo os pássaros nos ramos altos.

domingo, 9 de dezembro de 2007

fuga

A natureza quieta. Passagem triste do frescor para a deterioração. Morte interna de um objeto indefeso. Uma fruta, raptada de sua morada, o que pode almejar? Dentro em breve, de dentro de sua própria vida, de açúcar e cítricos, surge o intruso. Corroendo a oferta, desfazendo o contorno firme, útil, incisivo. Substância para os dentes. Tons de azedo ou doce sobre as línguas. Fartura e dedicação. Ou isso: destino certo e a visita dos insetos. Até que a fruteira não seja mais digna de qualquer pintor. Saudosa sedução dos odores. Até que a morte traga também o escândalo assimétrico da feíura. Caminho igual para aqueles que vivem estágios de frutas.

maquete

Nesta caixinha, eis a miniatura. Ventos brandos. Noites cálidas. Clima de bons temperamentos. Águas preguiçosas. Pássaros que também saibam cantar silêncios. Lagos de medida suficiente para nossos corpos e algumas brincadeiras. Peixes para águas fundas. Frutas alegres, bem dispostas. Árvores anciãs, firmes e tão generosas. Talvez nômades, visitas para o exercício de gentilezas. O fogo, para cozimentos de cera. Floração de estrelas. Lua em quatro histórias, porque isso é bom. Um sol ajustável, sempre amigo. E as chuvas, orquestradas, sinfônicas ou sonatas. Filhos sonhados, pairando no espaço como anjos que não caem nunca. Apenas brincam e são filhos de todos. Tu e eu. Meu tear. Teu helicóptero. Nossa arquitetura de sonho. O paraíso.

sábado, 8 de dezembro de 2007

hélice

Amanhecer amanhã depende apenas da certeza de que estou viva. Sem mim, a manhã deixa de ser e vai embora deste mundo. Quando eu morrer, só eu não morro. Todas as coisas que passaram por mim, existentes, sonhadas ou inventadas, todas elas irão para onde? Cessarão minhas lembranças. Nenhuma dor vai doer igual. Vai sobrar espaço no mundo porque ao morrer, levarei tudo que através de mim era referido, ou narrado. O amor restará. Este, que te dedico por toda a existência. Teus olhos estarão tristes. Ou cansados? Na hora da morte também não nos deixam descansar. Enquanto eu estiver nesta viagem, só em ti seguirei e só a ti renderei graças. Estarei ao teu lado, como brisa, ou enfeitada de chuva fina. Em dias de luz e brilho, recordarás nossas férias em criança. Ao final da tarde, se os jasmins trouxerem lembranças a teu olfato, dirás a teu amigo, que sempre buscávamos este aroma para morar em nosso jardim. Vai amanhecer daqui a algumas horas aqui nesta margem. No teu país, a noite ainda cairá. Talvez apenas um cataclisma possa fazer com que os horários do mundo nos separem.

prisão


Fiz e refiz o arranjo nos cabelos. A madrugada partiu. Os raios de sol me agrediam. Esperei toda a noite. Esperei que as primeiras gotas de orvalho sinalizassem tua chegada. Nem que fossem dez sóis me aqueceriam o coração. O corpo treme, ainda, fora dos caminhos. Onde estará meu amado? Que tumultos o prenderam para que não estivesse aqui à hora prometida? Para onde posso seguir, sem tua companhia? Sento-me junto à pedra que ouviu minhas promessas e lamentos. Começo a arranjar os cabelos soltos, que estavam também à espera de teus carinhos, lavados com água de alecrim. Prendo todos os fios em tranças que me distraem. Guardo o choro e a tristeza, obedeço a convocação do dia. As mulheres do rio irão me encontrar calada, flor de pétalas desbotadas.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

passaporte

A promessa está feita. E agora é lei. Chego na outra margem, no anúncio do verão. Será este meu presente de aniversário. Já não há como suportar a fome de estar ao teu lado. Preciso te entregar tudo que sobra. Na bagagem, levarei mimos de amor. Alguns pedacinhos de minha terra, algumas delícias que te surpreenderão o paladar. Quero entregar-te esta rede, tecida em linho antigo. Se não estiveres à minha espera, se não desejares minha chegada, ainda assim, estarei lá. Se teus braços não me receberem, ficarei mendigando no porto, sem nome e sem paradeiro. Se não me desejas ao teu lado, juntos na mesma margem, serei, para sempre, estrangeira de mim mesma.

passeio

Põe asas nos teus pés. Deves fazer de teus passos, sussurros. Estejas atento ao teu caminhar, para que seja macio, gentil. Desde que este amor iniciou a habitação de meus dias e céus, em tudo que vivo há uma dedicatória à tua presença. Gosto de me aquietar, para sentir este amor ainda mais alto, vigoroso. Se a vida tenta me distrair com pormenores, apuro os sentidos, reteso meus ossos para manter a atenção, absoluta. Sonho acordada, para ter controle das belezas que construo. Espalho meus sonhos, bordados em ouro, pelos caminhos que são teus. Põe asas nos teus pés. Não pises nos meus sonhos, distraído.

mérito

Estamos há horas na relva, acompanhados da sombra generosa desta árvore. Trouxemos livros, frutas, vinho, pães, alegrias. O cansaço que o corpo gritava, fruto de trabalhos intensos, agora silencia, acalmado. Enquanto você desenhava, estreando seus lápis novos, eu seguia minha leitura. Recolhi o livro, peguei as agulhas e voltei ao tricô. Preparo o teu agasalho, para o inverno que teremos. Agora, meus olhos embriagados ganham a visão de teu corpo, preparado para o mergulho. Todos os meus sentidos despertos, acompanhando teus movimentos. Tiras a roupa, exibe teu corpo forte, e o bronze da tua pele constrasta com a tonalidade azulada da água. Chegas na beira do rio e as águas frescas se oferecem. Quando mergulhas, me crispo. Quero teu corpo, teus movimentos, tua alegria. Em algum instante, voltas o rosto para minha direção e me convida: a água está deliciosa, vem! Feliz, excitada, nua. Teus braços me prendem. O frescor do nosso amor me embala. Tarde de amor, tarde luxuosa.

pálpebra

acordei com a tua presença, o teu olhar. ainda dormindo, surgiu-me o teu rosto a meio de um sonho. imagens desfilaram do nosso sono. um abraço de corpo inteiro, joelhos dobrados, flanco na cama e os dois corpos encaixados como uma única peça respirando sossegadamente. senti que olhavas para mim e o teu olhar era uma asa que me cobria, me protegia, me erguia no céu. abri os olhos e o teu sorriso banhou-me de luz. perguntaste-me se eu queria o pequeno-almoço na cama. e eu disse que sim e puxei-te para a cama.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

descanso

Dorme, meu menino. Põe na face a expressão despreocupada e que te acolham os deuses do sono. Que as fadas da delicadeza estejam a teu redor. Farei cessar ruídos desagradáveis. Preparo a temperatura que seja aconchegante, tépida. Não é preciso que estejas coberto. Deixa tua pele sem medos. Torno me tua própria vigília e estarei aqui, na soleira da porta, protetora dos teus silêncios. Teus sonhos estejam de acordo com teus desejos. Siga na tua viagem de encontro ao murmúrio leve da vida. Que seja bordado com fios de prata o céu da tua imaginação. Adormece, meu menino. Aqui fora, com todas as armas do meu amor, vigio e oro.

felicidade

Todos os aromas possíveis aqui reunidos. Nosso cão, circula pela cozinha desde que comecei a fazer teu prato preferido. Hoje estou vestida de mulherzinha, de dona da casa. Tenho o vinho que me guia, e tempero tudo com uma certa embriaguês. Sei dos teus gostos, fiz o doce que aprendi com tua mãe. Hoje a noite é só nossa. A cama está arrumada desde cedo. Mas de vez em quando, passo por ela, aliso melhor a colcha rendada. Ajeito outra vez o buquê de flores do campo. O suflê, só quando chegares. E também a delicadeza que terei ao entregar a toalha, quando saires do banho. A música me anima. Meu corpo todo te espera.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

abraço

ontem choveu o dia todo. foi como se o céu se abrisse em celebração diluviana e nos confirmasse o aconchego dos corpos. quase seria possível viver assim, de cama e beijos e calor gerado entre os dois. e nada mais. lá fora os caminhos alagados, o frio e o vento. no nosso mundo entre paredes o amor e o infinito. gosto de conversar contigo ainda abraçado, o prazer latente pingando, a voz açucarada de intimidade. as palavras conspiram com o silêncio e todo o corpo é gramatical. conjugamos os nossos desejos, a força e a vontade, o tecido dos sonhos, a seiva do dia. gosto de te ouvir, o teu coração batendo ali tão perto do meu, a minha respiração no ritmo da tua.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

cofre

Queres que te apresente as razões, o movimento, a trajetória. Pretendes fazer um exame minucioso para entender como foi que aconteceu. Amado dos meus carinhos, vai ser a primeira vez que te negarei um pedido. Tudo começou como a chuva. E os dias chegaram como chegam os dias. Interrompidos, diariamente, por sua distinta face. E ao chegarem, as noites traziam estrelas e sons regulares. As pessoas caminhavam, como sempre. Os automóveis, iguais. As crianças, sempre as mesmas. As flores, mesmíssimas. Pai, mãe, cachorros, caixas, livros, gravatas, anéis, estátuas, dinheiro, notícias. O mundo, meu bem, idêntico. Em mim, uma estréia, uma passagem. Em mim, para sempre, e até antes, tudo fora do lugar. Eu, outra. Eu, que agora em tudo que vejo e em tudo que faço, só sei exercer a vida assim. Eu sou o amor. E meu amor é teu.

arado

vens e retiras-me a concha de eremita. estou agora exposto a correntes e predadores, de carne mole como os moluscos. fazes do meu coração solo arado. e o meu olhar perdeu a pretensão de que se vestia. fazes-me acreditar que é preciso situar-me no epicentro da vontade e que asa é nome de gente. não poderei colher o que não cuido. é assim que descubro a lucidez do íntimo. porque estás diante de mim, não é possível fugir de mim próprio.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

chuva

O envelope finamente preparado, em papel cartão vermelho, se desfaz na calçada, seguindo os desmandos da chuva. Não faz sentido correr para tentar alcançá-lo. Prefiro perder as palavras todas, ajeitadas, a dizer-te coisas que não precisarias saber. Segue rua abaixo, a tradução cuidadosa, em letra cursiva e tinta lilás, de todos esses ruídos de algo que eu desejei chamar de amor. Mal comecei a frase, teu gesto me fez recolher o vexame. Não quero sobressaltos nem teus sustos. Nos meus guardados, vou adormecer o amor e o silêncio.

horizonte

quero mostrar-te nos meus olhos a beleza do mundo. a forma límpida como se manifestam todas as promessas. a terra toda debaixo dos pés. a longitude da emoção. estabelecemos coordenadas para a pele. dormem os vulcões enquanto acendemos a paixão. e no mar não haverá monstros esta noite. é amor o pão que comemos.

quadro

Uivos de um cão na noite em claro. Imagens da fronteira, os holofotes e os guardas. Não me deixam passar e tu me chamas, sem que eu ouça tua voz. Não tenho documentos, esqueci meus sapatos e penso no confeito do bolo. Abro a bolsa, sob olhares vigilantes: fotografias, uma chave dourada, o livro de Clarice, uma maçã e envelopes. São muitos, o guarda me ameaça. Tua imagem se dissipa. Saem todos de cena. Resta a noite e os cães.

domingo, 2 de dezembro de 2007

efeméride

Quando eu te encontrei, era hora de levar para casa um lírio. Dia de meu aniversário e eu queria frases da flor ao meu redor. Tempos depois, perdi teu endereço e nenhuma casa me abrigava. A peregrinação me levou para longes, terras sem fim. Uns usavam chapéus, outros beijavam o solo e quase todos olhavam para o alto. Mãos contritas, balbucio igual à fonte trabalhadeira. Bolhas nos pés, corpo suado, a mesma roupa, cansativa. Uma santa, vestida de azul, abriu as águas e me convidou. Encontrei Alfonsina, e fui morar no ventre grávido, sedutor. De dentro, pouco ouvia do mundo. Ela despertou em dias de lua. Deu-me a chave, reconhecendo em meu coração a chama. Vieram as recordações dos tempos de suas cantigas, só pelo amor inspiradas. Presenteou-me com os lírios que você agora me entrega.

lábios

a vida é a mesma. depois do deslumbramento, veio tudo o resto. segue-se o dia após a noite, uma maré vem depois da anterior, cantam os pássaros canções de pássaros. e ainda assim, tudo deixou de ser o que era. é mais fácil conjugar o verbo ser, com a tua companhia. felicidade parece ter menos sílabas e um brilho próprio do que não é verbalizável. acordo e há um calor do meu lado, uma asa, o ninho. adormeço e sinto que vou de um sonho para o seguinte. e há ainda esse elemento de fogo, esse instigador da criação, esse dom dos céus, o beijo.

sábado, 1 de dezembro de 2007

enunciado

Até então só havia o verbo, desabitado da fatalidade própria, de ser intransitivo. Este limite intacto, me protegia dos seus medos. Mas o amor em mim cresceu até ser este espetáculo. Produzido à minha revelia, sendo a protagonista e a engolidora de fogos. O corpo deste amor é meu corpo. Este ser estranho a mim, que palpita, descompassa, aquece e refrigera em despropósitos. Companheiro insólito, que desde o verbo, chora, ri, perde os sentidos e a todo instante, sonha. E sonha sem pedir qualquer licença. Sonha por mim, sonha em mim, sonha a mim em desespero, em êxtase. Este corpo agora mesmo me alucina e me deixa cega, desafinada, só suspiros. A cortina abriu diante de ti, toda platéia. Meu corpo sem comando se exibiu diante dos teus olhos atônitos. Ao final, tuas mãos não aplaudiram nem interromperam meu salto mortal.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

sustento

quando voltei com o peixe, ainda dormias, no meio do tumulto do lençol. fui amanhá-lo. tirei-lhe as escamas e as tripas, cortei-lhe as barbatanas. deixei-o em sal e limão. olho para o peixe e vejo: é um animal. tem olhos de animal. se respirasse poderia olhar para mim. é um animal. eu quando pesco, geralmente pesco apenas um peixe. nesta costa quase todos os que apanho são de tamanho médio. para nós é suficiente um peixe. para mim, sozinho, é mais do que suficiente. olho o peixe, com grãos de sal a decorar-lhe a carne. fazemos parte do ciclo das coisas, teluricamente, diz-me a quietude daquele animal que iremos comer. saio da cozinha para buscar os teus lábios. vou acordar-te com um beijo, antes mesmo de tomar banho. e falar-te do tamanho daquele que escapou.

clássica

Para te ofertar esta dança, aprendi certos gracejos das libélulas. Jeitinho rápido de virar e formar ângulos no ar. Emprestei das borboletas a técnica de voar, sem nenhum peso. Sei manter o corpo alinhado no céu, feito gaivotas. Para que você me veja engraçada, dançarei como os pingüins. Trarei recordações da sua infância, ao dançar com os lencóis sobre o corpo, simulando fantasmas. Sei do teu amor por mim, sinto o calor que abre meu peito toda manhã. Sei também que és sincero. Não vais deixar de me dizer, se algo estiver assimétrico. Todos os gestos devem ser perfeitos, seguindo uma partitura exata, harmonia sem distúrbio, pura beleza. Descarto a primeira dança. A oferta é outra agora. Segues minha coreografia, em sonhos. Lá, no espaço indistinto dos teus desejos, serei Isadora, de pés descalços, cabelos soltos. Meus pés terão asas e meu corpo será o discípulo obediente da tua imaginação. E minha dança, meu presente, será finalmente nossa obra-prima.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

exercício

Se a morte há de chegar, decidi freqüentar suas imediações, treinar o desempenho. Imagino que te encontrarei morto, é em minha direção que a flecha foi disparada. O fio da lâmina, branca, atravessa meu coração desde agora. Meu amor é tanto que se morres hoje, é como se morresse o filho. Dor que nenhuma mãe aprende. Então, posto neste lugar, és meu filho e não te verei morto. Antes, a sabedoria me leva. Então, faço os cálculos para o que fazer com este tempo que me resta. Invento modos de usá-lo, à exaustão, sem qualquer desperdício. Antes de eu morrer, quero usar a vida para ser teu abrigo. E ainda depois. Escreverei cartas para que você as receba, diariamente. Há muito trabalho a fazer. E este trabalho me ajuda a negociar com a morte, dando a ela um prazo aproximado, para que não chegue no improviso, para que não vista suas roupas nervosas. Nada de tragédia e sangue. Morrerei calma, e dirão todos de minha expressão, que era serena. Não vou morrer resistente, com semblante irritado. Tampouco terei ar de quem diz piedade. Não verei morto meu filho, não verei morto meu amado. E essa razão de minha morte a transforma na melhor barganha.

banquete

chegaste com o último esforço dos braços nos remos. quando saltei para puxar o barco para terra, era já o teu aroma que na praia se misturava com a maresia. e não consegui distinguir a tua voz da canção dos pássaros. era o meu nome que lançavas, como o anzol antes de um abraço. e eu fiz-me sustento para a nossa fome, ali mesmo, esquecendo-me da âncora e do decoro. foi com um berro e uma gargalhada que me lembraste que o barco estava a ser roubado pelas ondas. e, sorrateira, fizeste-me tropeçar, assim que a minha tarefa acabava, para te atirares sobre mim, sobre a água. era este o sabor que tardava? o mel salgado dos teus lábios, esta ambrósia, único alimento do amor-banquete? não quiseste desembrulhar as prendas. e ainda brincaste comigo, sem olhar para o espólio da viagem, dizendo que já o tinhas feito. mostrei-te a tatuagem que trouxe e as duas cicatrizes de um trambolhão de que não me posso orgulhar, como aventureiro heróico que não sou, que não fui, naquela encosta menos inclinada que a minha propensão para acidentes ridículos. não te trouxe feridas para lamber, apenas sal, que pedi emprestado à maré.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

feitiço

Eu pressentia tua chegada e ainda menina, iniciei os trabalhos. Aprendia com as matriarcas ao meu redor, rendeira e tecelã. Desde cedo, encantadora das palavras, inventariei as espécies e dei nome a todas elas, meu catálogo e álbum. Descobri a alfazema em meio à oferta de ervas. Aprendi a desejar e me transformava em flores. Recebi ensinamentos sobre banhos, enfeites, criatório de gente e alegrias dos bordados. Se me dessem apenas pedacinhos, retalhos de estampas variadas, erigia então minha cosmogonia. Dança de estrelas, chuvas e vendaval. Antes de avistar teus cabelos compridos, soltos, salpicados de areia e sol, já havia feito a eleição dos aromas. Teus medos, tua insegurança, a sede e ânsia, tudo se dissipava ao contato com a fragrância e a maciez. No preparo do teu travesseiro, deixei uma réplica ao meu dispor. Para os casos de saudade sem remédio.

sede

não é costume escrever postais. surpreendi-me ao esgotar tão depressa tão grande remessa de envelopes. ainda pensei em fazer como se vê nos filmes de época. dobrar a carta e lacrá-la, elegendo-a à condição de envelope. se funciona com o meu coração, ao abrigar o nosso amor, talvez essa técnica, consolidada pelo tempo, encontrasse no anel que me ofereceste selo à altura da ocasião. é cansado e feliz que olho pela janela do avião. nota que me atrevo a dizer feliz em frase sem o teu nome ou um eco de ti. o caminho amadureceu-me os desassossegos. e soube encontrar frutos nas árvores que não plantei. é um homem de olhar menos ansioso e mãos mais calejadas que se aproxima do teu abraço. sei que deixaremos os conta-me como foi e os sabes que na tua ausência para depois. sou como o marinheiro da anedota. perguntaram-lhe qual a primeira coisa que ele fazia ao chegar a casa, depois de longos meses no mar. e ele respondeu que fazia amor com a mulher, apaixonadamente. e a seguir?, quiseram saber. a seguir pouso as malas.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

ébria

Espalhei tuas fotografias pela cama. Percorri cada traço, como se pontilhasse com minhas mãos teu corpo, lábios, sorriso, olhos. Amanhã sei que chegarás e até que o dia amanheça, meu único ofício é esperar. A noite é fria, e me protejo do desamparo dessa cidade estrangeira. O quarto é confortável, paguei uma taxa maior pelo café que receberei no quarto. Ouço nos programas de tevê meu idioma como se fosse outro. Que modo é esse de falar a minha língua? Este vocabulário estranho tem nomes que invadem meu arquivo. E me constrangem, me tornam outra no território que eu supunha conhecer, minha fala materna. O vinho aqui é melhor, mais costumeiro. Ainda faço cálculos para entender o câmbio, meu corpo se diverte com meus enganos. O fuso horário altera o humor. Aceito, então, que minha primeira manhã em Lisboa seja minha referência. Vai anoitecer lá, na outra margem, e as luzes matinais desta cidade estarão em desacordo com meus irmãos. Deixo os países. Volto para você, e nesta cama larga, antes que o dia chegue e um funcionário me avise da tua chegada, meu desejo se espalha e nosso amor já começa.

rodas

A circulação durou até altas horas. Quase sei de cor as vestimentas, os calçados, e alguns gestos. O ritmo das passagens diminui um pouco, e agora consigo ouvir o som da colherzinha batendo na xícara, de uma ou duas mesas ao lado. Lembro da leitura dos mistérios nas borras de café, enquanto a feira era consumida com ruídos. Esse amor já estava previsto. Aquelas manchas, intraduzíveis para mim, anunciavam tua chegada. Minha ressurreição e trégua. E dos acidentes, quem falaria? Onde estaria a escrita das estações solitárias, das noites sem fim, das noites em que nenhuma paz me alcançava? O teu número não atende. Você é agora um dos desaparecidos, e me faz mãe da praça e dos lamentos. A cidade me aguarda. O hotel barato tem a reserva, a penumbra e a cama. Sou só desconforto. Meus olhos olham para nada, meu corpo multiplicado em dores diversas. A roda-gigante gira sem intervalos. Este dia não acaba mais.

primeira carta

meu amor, esperava claridade, uma visão límpida, o contrário de tudo o que é turvo e pantanoso. mas a tua ausência ainda não me permite a lucidez dos despojados. é preciso encontrar o espinho e o seu fulcro de dor, compreendê-lo e aceitá-lo. muita água escorrerá na clepsidra da nossa história. e depois, espero, alucinado e crente, poderei ver a emoção como um rosto no espelho de um lago. perto de ti, é certo, nem sonho compreender, tudo é sentir. é aqui, no planalto do tempo, que vejo as cores do pôr-do-sol e o solo que percorri. e percebo que horizonte pode ser a irregularidade visível. por enquanto, caminhar tem pouco sentido se ao fim do dia sou eu que desaperto as sandálias e lavo dos meus pés o pó que trouxe de longe. e adormecer é poder esquecer que adormeço sozinho. amanhã acordarei para te beijar. e, noutro fuso e contexto, já estarás trabalhando, sabendo que não estou e que o beijo tarda. sonha comigo, que suspeito haver asas para os que não sossegam com a noite. seja o teu dia límpido e feliz. as minhas horas são cheias e ardentes. até breve, minha querida, cor do meu íntimo, amor claro, pássaro do meu sangue.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

estação

O trem me abandonou aqui. Deixei as malas, perto de mim, mas quase abandonadas. Tudo dentro delas é disperso. Tuas cartas, aperto-as, ao meu peito. Esta é toda minha bagagem. O corpo está desgovernado. Sem banho, sem higiene, sem descanso, as roupas cansativas, o cabelo desarmado. Meus pés não têm qualquer romantismo. Há fogo dentro de mim, e medos. Ah, você não há de querer-me, como antes. Tudo é tão perfeito nas nossas cartas. Estou mais velha. Talvez também menos engraçada. Horas demais, nesta viagem. Nenhuma paisagem me interessou neste continente, inaugural para meus olhos. O burburinho das pessoas que sabem para onde vão. Os encontros. Alguns, que esperavam, saem acompanhados. Há risos, choros, movimento. Não quero que você venha. Não há mais tempo para me transformar em estátua. Não saberia para onde voltar. O trem já partiu. Quando você surgir, em qualquer direção desta agonia, só então eu chegarei. Teu abraço trará de volta tudo que sou.

ânsia

tenho sono. o hotel não é acolhedor. o dia foi longo. não falei com ninguém. amanhã um encontro esperado. poderei contar algumas aventuras de viajante. rever as histórias em comum. conhecer o que mudou e o que permanece entre nós, amigos separados pelo tempo e não pela distância, que o coração o transportamos sempre no peito. se me perguntar e mulheres, que tal?, não sei o que lhe direi de ti. conhecer-me-á o embaraço e o silêncio comprometido. talvez uma pancada no ombro ou um riso discreto me ponha num à-vontade cúmplice. direi o teu nome. e pouco mais sei, que se transmita em palavras. antes de mergulhar no sonho que vier, a carta primeira que te escrevo.

ninho


Quando eu era noviça, eles foram cortados, rentes, para me livrar do mal e da vaidade. Escolhi a clausura, enquanto o mundo te levava. As pedras do claustro falavam comigo, ouviam minhas lágrimas. Eu quis me entregar para outros deuses. Usei outras alianças e troquei de nome. Escolhi um deles, sendo a noiva. Os votos me ocupavam e tua ausência devorava menos os meus instantes. Casta, pobre, quieta, uma monja sem abrigo. Aquele Deus precário, que tomei de empréstimo, sabia e me consolava. Deu-me casa, hábito, dias inteiros de serviço. Pecadora assídua, deixei que eles crescessem, como um crime. Soube do teu retorno, quando se ausentou do céu uma estrela que me era familiar. Do alto da minha cabeça, ninho resguardado, soltei-os. Cachoeira dourada. Derramados, entrego nesta bandeja meus cabelos. E parto.

sandálias

enquanto me calço, penso nas incursões nas montanhas em que não estavas, nos sorrisos de felicidade em que não participaste, nos banhos de mar sem o teu corpo nadando perto. esta viagem faço-a sozinho, que é como o mundo me pede que o encare. como era diferente a vida antes de ti. a palavra só não me inspirava medo. tudo era fácil, dado adquirido, segurança. cultivava mesmo uma aura de solitário, tão artificial como genuína. agora conjugo os verbos na segunda pessoa. quero-te ao meu lado quando o dia valeu a pena. quero dizer-te hoje fui feliz. não me apetece esconder as lágrimas, as ruínas, as derrotas. dentro de ti não sei dizer dor, desilusão, expectatica. e mal me afasto uma légua, o chão treme como em eras apocalítpicas. vou sozinho. e tenho já os envelopes para cada dia. receberás os selos de cada país, flores e incenso, especiarias e areia. levo comigo a concha que uma onda trouxe, a meio de um beijo salgado. e não sei ainda dizer distância.

domingo, 25 de novembro de 2007

domingo

E ele, então, descansou. Lavou as mãos, despreocupado. Asséptico, livre de culpas. Quis dormir, deitou-se. Incitou-lhe a réstia de lua, chegando através do vitral. Levantou e andou pela casa, a reconhecer ângulos e cômodos. Percorreu a fileira de livros e nada o interessou. Um chá lhe faria bem, mas somente ela sabia como preparar e servir. A memória trouxe o quadro vívido: era noite, o frio instalado desde há muito. A cama pronta, o filme que veriam juntos mais uma vez. Ela entrou no quarto, com a bandeja reluzindo em dádivas. Chá de maçã, polvilhado com a chuvinha de canela, leite aquecido, pães quentes, as frutas bem arranjadas e as florezinhas colhidas no jardim, agora há pouco. Toalhinha de renda branca, bordada com as suas iniciais, lembranças da noite de núpcias. Ela era a mãe da casa, o alimento da rotina, presença toda fresca, de estrelas. Nada poderia interromper a roda do destino, ele não seria nunca mais o mesmo. Sem ela, toda a criação voltava ao limbo.

sábado, 24 de novembro de 2007

ritual

comprei envelopes. de tamanhos e cores diferentes. lápis, grafite, carvão. uma caneta de aparo. e tinta. em casa tenho papel e desejo. abro as tuas cartas com um desses objectos que servem para abrir envelopes, de que não sei o nome. um movimento preciso, acompanhado de um silvo, ao rasgar-se sem erro o topo do envelope. não quero abrir as tuas cartas rasgando tudo desordenadamente, como um amante apressado e desajeitado. saboreio todos os gestos. e ao escrever-te, uma pequena liturgia dá sentido ao que faço. ajoelho-me debruçado sobre a cama. ponho a nossa música. respiro fundo. e é com o teu olhar pousado sobre o lençol que me dirijo a ti.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

chagas

Abandonemos esta cruz. Esperemos que as ramas se apossem de toda a extensão da madeira velha. Hão de surgir gerânios e graminhas. Vem para os meus braços, e te deixarei soltar o choro. Serás agora meu menino. Com meus panos alvos e macios passearei pela extensão da tua altura, tocando com delicadeza de brisa as tuas feridas. Uma fêmea lambendo os lugares onde virão pousar as cicatrizes, na calma benfazeja, desta dor que te consome. Teu corpo dorido é meu mapa de trabalho, nos breves silêncios e respirações curtas com que me pedes tua salvação. Meu amor transformado em tecido santo, ungüento e milagre.

minérios

De frente para o mar, este é o mirante escolhido para seguir, à espera. Cada dia é uma carta, ou tantas a mais que não recebo. Não tenho notícias e tudo gira em torno dessa fogueira inerte. Mesmo sabendo do mar, que é inconstante e sempre outro, recebo dele algumas fixações. Marés que vazam, lua que mingua, ventos aos redores. Tuas cartas que não chegam, eu as imagino em pilhas, que o tempo transforma em relevos e lhes dá substância. Não sei a medida e calculo a partir do frêmito, das águas más dentro do meu corpo. Todas as cartas que não me envias, se multiplicam. E a espera forma esta frase sedimentada, camadas infinitas de silêncio.

fivela

não trouxe da praia conchas, nem o horizonte, nem gaivotas. trouxe as minhas mãos, que te irão passar a roupa, para que te vistas. os lábios que te irão acordar. ficou lá para que o colhamos, entre a espuma e a areia, o fôlego de mil asas. mapas de sal nascer-nos-ão nos ombros. mergulharemos no azul, sem barbantana ou quilha. e ao chegarmos à praia, escorrendo água e sorrisos, esperar-nos-à a vida. e passando-nos a toalha para que nos sequemos, terá as sandálias na outra mão. calçar-nos-á para o caminho, aconchegando-nos a roupa e beijando-nos a testa.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

bárbara

Nunca é tarde, meu amor. O encantamento é de mil anos. As heras formam o esboço de arqueologias. Planuras que não acabam. Haverá tempo para minha coleção de pétalas, guardadas nos livros de poemas que me dedicas. Tua coleção de selos e países acrescentada. As árvores frutificarão, de sobra. Pão eterno, do trigo vário, bem disposto. Serei madrinha das sereias e tu, treinando lutas ainda, com os dragões. Nunca é demais. Terei outras faces e outros nomes. Viajarás ilhas e no teu cansaço, mulheres te acolherão, para meu desespero e fúria. Tenho ciúme das tuas gerações. Invejo todos os teus disfarces. Pousa tua mão sobre meus lábios, para que eu não amaldiçoe as outras. Já queima em mim, me alerta, a descendência que é teu futuro. Pousa sobre minha testa um beijo que me acalme. Entregue a mim o teu amor sem pressa.

pálpebras

escrevi um poema ainda dormias. a janela aberta sobre o mar. as cortinas dançando na canção do vento. gosto de observar os teus movimentos durante o sono. adivinhar-te os contornos dos sonhos. ontem adormeceste nos meus braços. as tuas pálpebras vibravam, enquanto um sorriso te preenchia o rosto. por momentos apertaste as minhas mãos com mais força. proferiste nomes e sons sem existência no lado em que eu me econtrava. no mundo que atravessavas todas as coisas são criaturas e a imaginação é um maestro brincalhão. as ondas marulhavam o seu múrmurio quando pousei o teu corpo na cama e o meu a teu lado. antes que te abraçasse, aconchegaste o teu sossego ao meu peito. e dormimos assim, entrelaçados no calor. os versos que me nasceram, como orvalho pela manhã, repousam, impronunciados. ouvi o meu nome e acorro ao teu despertar. vamos devolver ao sonho o teor da volúpia.

migração

A encomenda chegou. Aos pulos, depois da caixa aberta, espalhadas pelos cômodos, eram tantas que quase faziam barulho. Gêmeas de si mesmas, em suas taguagens duplicadas. Tão diversas que algumas nem existiam fora de sonhos. Filhas de um deus artesão. Foram convidadas para fazer deste dia um relicário. Procuro jeitos de te agradar. Se faço um contorno em torno dele, do dia que agora começou, instalo teu corpo no centro, ao trono, para receber as honrarias. Minhas companheiras começam o trabalho e voam. Suspendem a trajetória pontuando, mínimas, a orientação da dança. Peças de vidro, retalhos luminosos para tua vaidade. O dia, assim, multiplicado, milimétrico, são todas as maneiras que invento para ser tua. E elas partilham comigo o poder dos vôos.

fantasia

Sem nenhuma pressa, o mar ensina este bordado. Suspendo pelas duas mãos o tecido, faço um gesto dançarino. Braços à larga, coreografia flamenga e o chão está coberto. Tudo agora é trabalho de lisuras. Abro a cesta. Meus olhos indecisos têm apetite, desejam glórias. Rendas, brocados, fitas, pedacinhos de céu, coleção de antiguidades, lembranças do mundo. A superfície azul me espera. Fecho os olhos para me tornar, neste instante, respiração exata e paciente. Para meu amado, a festa das lantejoulas. Aqui será feito um universo de brinquedos, casa perene de alegrias para tua pele. Não usarei a história, nem as bússolas. Este pano é âncora de horizontes. Uma constelação, teu abrigo e mapa. Tenho as mãos seguindo o rumo das marés. Cada onda traça os fios em meu bordado. O desenho é quadro, a seda é tela. Para que esta agulha, que é tua distância, finíssima e incrustrada, jóia definitiva, seja toda a partitura. Para o meu amado, meus cabelos nestas águas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

nuvem

com o meu conteúdo a forma ganha forma. encho o dia com ar, sémen e calor. deixei a obstinação a dormir. deve estar cansada a coitada, trabalha tanto. costas na erva, daqui vejo o céu. os ruídos mais irrequietos emigram, como asas diluindo-se pouco acima do horizonte. não vejo o teu rosto, substituindo-se às nuvens na abóbada celeste, com o tamanho de um sortilégio ou de um milagre. e a tua voz vai abdicando da persistência do eco. o teu cheiro no meu corpo já se misturou com o meu. é assim, sem a sofreguidão da minha mortalidade, que te sinto mais próxima. e deixo de dizer a tua pele, o meu cabelo, o teu olhar, as minhas mãos. não sobrevivem as divisões ou os muros. sem fechar os olhos, vou mergulhando em ti, como cantando de noite o estuário de uma estrela.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

trincheira

Assim como ao cão sem dono dei abrigo, colhi a flor morrendo, para honrá-la em nossa casa. Tua viagem me machucando. Presságios de lua encolhida. Tudo na terra me dizendo coisas, sussurros espalhando medo. A flor estava lá, já derrubada pelas mãos afoitas. Aguardava a barganha, o invólucro e a etiqueta. Pensei que só poderias morrer nos meus braços. Bradei contra a guerra, ladra infame. Trouxe a flor comigo, trazendo a ti, no meu coração em chamas. Precária, sem rumo, brevíssima vida à sua disposição. Este segredo me faz louca. Quanto tempo ainda, para não encontrar ao meu redor a tua voz, os teus encantos, quanto tempo. Vou ao quarto e repasso por vezes inumeráveis o número de paredes, cismando. Que sonho este do qual desperto. Oratório que é pousada de efêmeros e para sempre. A chama que sobrevoa o quarto todo, o incenso e a súplica. A flor suspira, ainda. Sua medida é de passagem. E tu, amor dos meus silêncios, és minha bússola, meu prado. A flor que foi meu cão. A travessia.

a cor

é sinestesia olhar para ti. começo por te tocar com o horizonte que me invades na retina. um dedo ombro acima e colcheias subindo desde o ventre. aroma de nascente. vento comestível. quando os teus lábios improvisam o mapa, já nos caíu a bússola. juntou os seus cacos aos da clepsidra que estilhaçámos ao tropeçar no cristal do quotidiano. o dia perdeu a soberba que o tempo lhe cosia ao dorso. é sol o sol que brilha lá fora. serão raios os dedos de calor em redor da volúpia. eu como alimentando. sou a tua boca. e fazes das tuas ancas uma enseada. todas as âncoras repousam na ferrugem da caducidade. uma jangada ascendeu a altar. e os continentes respiram, vulcânicos, a sobriedade de todas as eras. sabes-me a asa. o nosso cheiro é o cio das marés. e repousamos na corrente em que remam os membros. nasceu-te um estuário. desembarcamos, enfim, enviados pela espuma.

sonho

nascem flores como cascatas circulares e improváveis. a gravidade perdeu toda a gravidade e muito da força. a Björk canta. e não é ela. o corpo tem vários braços e um cocar. impossível deusa indiana que avança desde o coração da Amazónia até ao fulcro do íntimo. o solo dardeja ludicamente as nuvens com gotas de terra. chovemos os dois numa canção telúrica. eis que é já uma onça o ser que me aponta a lua, grávida de um pássaro. e percebo que durmo e que só existe sonhar. sinto o calor do teu corpo. e a fome do meu. imagino-me a sorrir a teu lado. ainda de olhos fechados, ouço-te cantar. e não é a Björk. é o nosso desejo, ritmo das noites que fabricamos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

vigília

Zelo teu sono. Controlo a temperatura e os sobressaltos. Há dias esta febre te ocupa. As ervas fazem um trabalho demorado e tenho medo. Te escuto, te acompanho. Se demonstras que tens frio, rapidamente te aqueço. Se apresentas uma expressão de dor, pouso minhas mãos milagrosas até que tua expressão esteja suave e serena. Recordo o momento em que chegastes, esgotado, roupas esfarrapadas e fome por todos os lados. Eras a figura exemplar de uma ilha devastada. Ao teu redor, fraqueza, ânsias, desistência. Não me destes respostas e minhas perguntas tolas pousaram sobre as pétalas. Na aldeia, era o dia de trocar as flores. Os rituais de colheita e inaugurações. Tudo em volta era uma constelação de ruídos. Cobri os espelhos, fechei as janelas, tapei os seus ouvidos. As sereias da morte dançavam na extensão do jardim. Tua febre, teus calafrios. Teu sono povoado de monstros. Teus sustos. Todo meu corpo uma orquestra. Sem você, nenhuma música, nenhum grito, nada que explique minha ocupação de espaços. Zelo teu sono. Eu, sacerdotisa, fecho os olhos para ver teus sonhos. Apareço nesta tela branca e sussurro que voltes, que sempre estejas.

aposentos

Esta casa nos faz arquitetos. Consideramos as marés e fincamos os mastros, nos pontos cardeais da planta baixa. Estudos diários sobre os ventos e eis a instalação dos moinhos. Ao redor, fios tênues, elásticos, para seguir sem exaltação e sem horrores as desobediências das águas. Ávidos coletores desenhando o interior de cada cômodo. Os cômodos são palcos. A direção do espetáculo é compartilhada. Quando chega minha vez, dirijo os movimentos do teu corpo para os prazeres da minha carne. As naus que passam trazem acenos dos marinheiros mal alimentados, sem zelo e sem higiene, a desejar o frescor desta pousada em alto-mar. Os jardins são suspensos. Temos nossa biblioteca, reunião de todas as nossas astúcias. Nos teus dias de diretor, fazes de mim tua brincadeira preferida. Chama as gaivotas que trazem fios de prata e enfeitam meus cabelos. Esta casa me faz tua. Digo o teu nome. Digo minha fome, que é você, meu homem.

tesouro

A personagem dizia que o artista nunca é pobre. O saldo de minha conta bancária era reservado para gastos úteis. Uso exemplar da noção de poupança. Resguardo para as intempéries, proteção contra os ciclones, falências, barricadas, uma doença grave em família. Lembro daquela mulher de rosto cansado, tão disposta a ser apenas dedicação e entrega. Na pequena aldeia, todos de mãos dadas, cantavam rendendo louvores à lua e ao vinho. Olho os papéis espalhados na minha cama, lápis, bloco de anotações. A nossa colcha colorida, toda desenhada com rosas, agora coberta por cálculos e medidas. Jogo tudo no chão. Vejo o lençol azul, e alguma tatuagem de ontem. Sinais do nosso encontro. Os travesseiros têm seu cheiro. E eu sou apenas desejo. Pelo telefone, abuso dos limites bancários, perco a razão e o dinheiro guardado. Amanhã, antes da tua chegada, esta casa será teu palácio. E eu serei a mais rica de todas as mulheres desta aldeia.

ofélia

Nem sei dizer como cheguei a esta decisão. Sei que houve um momento em que de repente saltei da amurada. Estava doente de tanta saudade. A saudade me habitava, sem tréguas. Tudo em mim doía, queimava. E não havia lugar certo, lugar cômodo, nenhum conforto disponível. Inquietação, queimação no estômago, vazio sem fundo. As águas me levarão até você. Eu só preciso ter força, resistência e fôlego. Nadar movida pelo desejo, pelo não sei quê de ânsia. Ficar aqui, do outro lado da margem, sem ação, sem planos, assim é que não pode ser. Meu desejo vai me guiar. O tempo não passa na sua ausência. Jogar-me ao mar é retornar às circunstâncias, aos acontecimentos. Antes disso, tudo aqui era névoa. Tudo o que me cercava era feito de nuvem. Quero apenas estar em seus braços. É nesse lugar que começa minha vida.

à noite chega o assombro

antes de dormir queixa-se o corpo. altamente inflamável, arde como um imenso pedaço de lenha. berra, irremediavelmente mudo, langor e desejo. olha o lençol, triste e liso, sem marcas ou cheiro do teu corpo. não apetece o banho. fique salgada a pele, celebrando o banho que tomámos juntos. dispo do corpo a roupa e a sofreguidão, preparando-me para não dormir. é a vígilia uma inevitável canção de saudade. ainda que imagine tua a minha mão, que feche os olhos e percorra imagens como flores explodindo, que sussure o teu nome à lua, fico, sozinho, atolado na tua ausência. desato a escrever, como exigindo à sanidade horas extradordinárias. risco folhas com o aparo e o dorso da noite com o espinho da volúpia. desenho e rasgo, mordo os lábios e suspiro, olho o mar pela janela e inspiro fundo. amanhã um telefonema. um abraço. e o mar encarpado dentro de nós.

domingo, 18 de novembro de 2007

decibéis

Se não voltas para casa, vou encomendar a implosão. Dos ladrilhos ao teto, haverá a assepsia de tudo. Cortei os cabelos e fechei os botões dos vestidos. Todos os móveis descobertos, janelas escancaradas. Tudo virá abaixo. A inutilidade da decoração. O acréscimo oleoso das fotografias. Teu lugar na cama. Meus vícios na geladeira. O olhar fixo agora se descuida. Enquadramentos sem memória, feitos para eu me esquecer. Lições de terror. Se não voltas para casa, deixarei uma mensagem que irá aos ares. Pedaços do filme antigo. Na grande cena, no escuro habitado, os objetos flutuam em câmara lenta. Vai cair a casa. Explosão. O mérito é todo nosso. Provisões, assentos, portas, ferrugem, poeira e o cão. Nos olhos do cão, me torno criminosa. Recuo. Mulher, bomba e sustos.

cerimônia

Nenhuma ordem a seguir. Dispensada a combinação das cores e a rigidez dos talheres. Motores de finíssimas alucinações. Suficientes doses de fantasia na paleta diversa, ondulações das cores do céu e do mar. Registro e disseminação dos aromas propícios. Cheiro de terra, memória do pão quente, sinais explícitos dos jasmins beirando a noite. A delimitação usada para compor um cômodo com o qual serão cobertas as quatro paredes. Alegorias, ramagens, tons pastéis, anjinhos e algumas libélulas. Sim, as velas. Todas acesas, moldadas, feito figuras delicadas dos mais conhecidos clichês: velas de coração, tulipas, rosas, pássaros, frutas, joalherias. Efeitos sonoros com o vento: penduricalhos de percussionista. As servas para meu preparo: banho, cabelos, óleos e vestes. Excesso de flores em composição de luxúria. Os morangos óbvios, cuidados, colhidos a pouco. Ao redor da seda, no mais ajustado contorno, pétalas inaugurando tons inúmeros de brancura. Tua rainha, me apresento, com meus olhos de impossível.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

sobre a primeira manhã

Levantei-me cedo, pus a toalha lisa na mesa. Vestígios de banho de mar, na noite passada, nos detritos e areias do meu vestido com a bainha rasgada. Sinais de ontem. As lembranças, ligadas mas com espaços vagos entre si, enfileirando-se como bando de várias gaivotas. Ao meu alcance, a vista das colinas e das ondas, o sol brilhando forte demais, frente aos meus olhos relutantes. Durante a noite teu cheiro me acordou, me deixou desperta e mesmo agora, depois de minha corrida matinal, não posso esquecer que nadei junto ao teu corpo, nosso banho de mar na noite, assinalando um batismo firmado no limite dos grãos de areia cúmplices, sob estrelas fazendo o percurso do céu disposto. Desejo atirar-me em seus braços, outra vez, e tantas mais. Devo vestir-me, pegar o celular junto à cama, encontrar as chaves do carro e deixar o bilhete para teu despertar. E ainda, antes de sair, é preciso lembrar de abrir as janelas, permitir a entrada de vento, pássaros e sons da rua. Para que a beleza de teu corpo não pareça esquecida nesta cama imensa.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

sessão de comunicações

Quero encerrar agora esse inventário. Quase dezesseis horas após ter saído da cama, com medo da chuva e de meus humores, é que encontro seu bilhete. Meu nome escrito com uma tinta preta, grafado por sua letra bem marcada, graúda, espaçosa. Você usou uma das folhas do bloco que ganhamos no congresso. Antes de passar os cremes, observo se há alguma ruga nova. Fecho os olhos e revejo a tarde infantil, quando apenas assinamos a lista de presença e fugimos daquelas comunicações enfadonhas, que tratavam de questões lusófonas e transculturais. Nós éramos, nessa tarde, a expressão exata da lusofonia. Eu, você, nossos países, nossas diferenças. Nossa língua, irmã, foi o mensageiro que nos tornou íntimos, e cúmplices. Não leio. Decido dormir e sonhar com as palavras que aguardo. Amanhã, antes de me aproximar da janela, somente amanhã.

a primeira manhã

levantei-me cedo. abri as janelas e saí. a tempestade durante a noite não me acordou. como habitualmente, só soube da tormenta pelos vestígios: a areia lisa, como uma toalha acabada de pôr numa mesa imensa, e várias franjas de detritos, um pouco acima da bainha da rebentação, como sobrancelhas ligadas entre si, assinalando o alcance das ondas. poucas gaivotas. o sol brilhava perto das colinas, como se relutante ainda em atirar-se ao seu percurso ao longo do céu. corri a minha corrida matinal e nadei o meu banho de mar. foi, no entanto, o duche que me acordou definitivamente. com o chuveiro empurrei os grãos de areia para o ralo. vesti-me e mesmo antes de sair lembrei-me de fechar as janelas e trancar a porta do fundo. o telemóvel ficou esquecido, algures pela casa.