domingo, 26 de outubro de 2008

8ª Carta - Tempestade

Meu irmão,

A morte espreita-me os sonhos, ronda a caravela, agita o mar. Não consigo dormir. Tenho quatro horas para descansar, mas é impossível encontrar sossego, neste balanço infernal. Há água por todo o lado, sinto que tenho as roupas encharcadas desde sempre, a chuva atinge-nos como flechas geladas disparadas por inimigo invisível. A tempestade dura há dois dias, e estamos todos exaustos. Vou voltar mais cedo lá para fora, para combater a tormenta com as forças que me restam. Perdemos três homens, que caíram no escuro das águas. O Telúrio foi um dos que encontrou o fim no profundo do mar. Não me resta esperança de que estas cartas alguma vez cheguem a ti. É difícil escrever, o tinteiro já me caiu por duas vezes e está tudo manchado. Não posso gastar papel desta forma e prefiro não pensar em nada. Vou entregar-me à noite, que estendeu o seu negrume pelo dia, com o conluio de nuvens e ventos.

Reza pela minha alma como eu faço por ti,
Seja o que Deus quiser, que o diabo acordou,
Afonso.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Carta na noite sem lua

Noite sem brilho. Uma coberta lisa de sombra. Céu pesado e definitivo. A espera vai devorando o espaço da alegria. O corpo não encontra pouso. Vejo a tempestade anunciada. Raios soam como disparos, interrompendo a noite sólida. Os sonhos maus me impedem de dormir. A vigília forçada é o único modo de escapar. No espaço dos sonhos, há guerras e violência. Homens armados, caravelas destroçadas. A fúria dos ventos é a voz de deuses ultrajados. Meus pés memorizaram os caminhos. Pressinto sua morte. Tento afastar estas visões. Os animais fazem uma assembléia lúgubre. E soltam seus gemidos de mau agouro. A noite se transforma num livro fácil de ler. Amanhã, na superfície clara próxima do mar, verei o que resta de seu corpo. Talvez morra também e seremos dois viajantes, novos habitantes invisíveis das noites sem brilho.

terça-feira, 17 de junho de 2008

7ª Carta - Febre

Meu irmão,

É o Telúrio que escreve estas linhas. Meu único amigo aqui dentro, ele é ainda mais desprezado, nas suas virtudes, do que eu. Ele era aprendiz de caligrafista, num mosteiro perto de Braga. Os desígnios da vida juntaram-nos e ainda bem. Deus permitiu que ganhássemos afeição um ao outro, principalmente nesta última semana em que ele cuida de mim, a seguir às suas tarefas. Uma febre muito forte e vómitos malignos me tomaram, como se enviados pelo demónio. Não há mezinha do Tiago cozinheiro que me tire estes calores, não há reza do Tobias que me faça acalmar os enjoos. Dizem que durante o sono eu grito, que digo que não com a cabeça e tremo muito. Há um nome que repito, numa língua desconhecida, que alguns marinheiros que mo ouviram berrar têm medo de pronunciar, como se fosse uma maldição. Eu já fiz o Telúrio prometer que mo repete, se eu voltar a dizê-lo enquanto durmo.

Ontem caí da cama várias vezes. Abanava o barco mais que o costume e eu perdido nos meus delírios. O Telúrio veio encontrar-me no chão, ainda dormindo um sono de alucinado, e berrando que o mar é uma serpente e que a serpente me engole. Lembro-me mal das suas palavras meigas, das suas mãos a levantar-me do chão. Sei que a seguir devo ter dormido melhor. E lembro-me de um sonho. A mulher, a jovem mulher nua que me aparecia em sonhos, voltou a surgir. Falava comigo, mas a sua voz era a voz de quem fala do alto de uma montanha em noite de tempestade. Eu ouvia os sons da sua boca mas não conseguia perceber o que me dizia. Antes de desparecer como a água numa pedra quente, sorriu um sorriso muito calmo, mais velho que o seu corpo pequeno e bonito. Irmão, esta mulher não é um desenho, nem uma estátua, é a primeira mulher que vejo nua. E se é assim a beleza escondida atrás de roupas e tecidos, não encontro razão para a sombra do pecado, ou para a vergonha. Não te sei explicar isto e sei que parece blasfémia, mas àquele corpo as roupas só ofuscariam o esplendor e a pureza.

Quero sossegar-te com a amizade atenta do Telúrio. Sei que estou em boas mãos e que Deus não me abandonou à minha sorte. Peço-Lhe que te guarde como a mim e te envie quem te alivie as dores. Rezo por ti e tenho agora a quem falar da nossa infância, dos campos verdes e da mãe. Chegue a ti a força das minhas orações, já que esta carta se vai juntar às outras, como prenda adiada.

Deus te abençoe irmão querido,
Afonso.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Cartas de lua cheia

É o extrato de um renitente romantismo que me provoca para narrar o encontro entre a índia e o homem branco. É de um gozo antecipado que me alimento. Enquadrar em moldura mítica e onírica uma história de amor, com substância de lenda. Isolar a crueldade implícita neste encontro, decorar o cenário deste amor com os elementos que até hoje constituem minha procura.
Quando descrevo os aromas que ela utilizará, para atrair o homem que está navegando mares bravios, combinação de perfeita conhecedora das ervas e das folhas e das matas, é primeiro a mim que ela fisga. Quando imagino a cena em que ela se banha nas águas do rio, aguardando o dia da sua chegada, é em minha pele que reverbera a delícia de seus hábitos.
Esqueço tudo. Desfaço as camadas de discurso. Abandono as vestes pesadas de ensinamentos de aparência razoável. Quero sair da sombra desta arena. Quero me desfazer das lições de guerra, desaprender esta cartilha bélica entre homens e mulheres.
Gosto de me imaginar prevendo o futuro. Gosto de me entender curadora das doenças do corpo e do espírito. Coloca esta mulher na margem do rio, esguia e apropriada. Sábia leitora, prevendo as alterações climáticas, adivinhando a tempestade antes que chegue. A mim, interessa muito aprender com ela o calendário regido pelas fases da lua. Esta mulher que prepara o chá e a cerimônia de toda a tribo. Elo bem desenhado entre o que há de encantado e a vida diária.
Hoje, esta mulher elabora as bebidas mágicas que irá oferecer para seu homem, que ainda não chegou. Esta mulher que sonha a viagem destemida deste homem, e que prepara o conforto para sua chegada. Ela o vê cansado, exausto. Faminto de porto, faminto de abraços. A rede que vai embalar este homem e seu corpo cansado está sendo preparada há meses. No trançado dos fios, ela deposita amor e cuidados.
Hoje, acordei desejando que esta mulher tome meu corpo e minha alma, que me leve para o reino diáfano do passado, que me ensine as artes de sacerdotisa, que me ajude a decifrar a linguagem das estrelas. Sou eu que a desejo. É minha esta ânsia de possuí-la, de encontrá-la e através dela voltar a ter fé no amor sem palavras, no amor filtrado das palavras vãs, no amor pleno, harmonizado com os ares, com os ventos e com as águas.

6ª Carta - Fôlego

Meu irmão,

Dizem que Deus me deu pouco juízo, que tenho a cabeça nas nuvens. Neste momento em que te escrevo devem estar a contar anedotas sobre a extravagância das minhas ideias. Estou certo que já encontraram mais uma alcunha para acrescentar às que já tenho, como troféus de ridicularia. Gastei algumas das minhas moedas para obter este jarro em que transporto terra. Sim, irmão adorado, por baixo do catre escondo este tesouro de louco. Quero lembrar-me que existe terra. Sujar os dedos com ela, sentir-lhe o cheiro. Dizem-me que serão semanas de mar a separar-nos de novo de terra firme. Tão breve a nossa estadia. E não consegui participar da desenfreada euforia dos outros marinheiros, cada um a procurar um canto onde beber até cair ou enrolar-se com uma mulher a troco de algumas moedas.

Confesso que foi tentação muito forte o cheiro do corpo daquelas mulheres, o atrevimento das suas maneiras, o fogo dos seus cabelos soltos. O Sancho, que agora trabalha comigo na cozinha, trouxe uma saia velha e rota. Com ela faz pantominas, à noite, que divertem os bêbados e atiçam a saudade do que é feminil e tão, tão distante que parece a memória de um sonho. Foi difícil guardar as minhas moedas e a minha honra. Esta última nem sei de que me vale, tão longe estamos de cidade ou lei que nos avise da imoralidade. A ilha só aumentou o tamanho do mar, que me inunda o coração e a alma. E os gritos da bebedeira, misturados com as vozes lascivas das mulheres, fizeram-me desgostar das minhas convicções.

Voltei a sonhar com seres femininos e suas teias de sedução e logro. Há um rosto que me assola. Tem a cara pintada e olhos como olhos de um ser muito velho. Embora tenha cara de menina, parece-me uma velha sábia, conhecedora das forças da natureza e do íntimo dos homens. De todos os corpos pecaminosos que me visitam nos sonhos é o único que está nu. E o único que não procura seduzir-me com danças e cantares. Apenas me fixa o olhar e a alma, como se quisesse entrar dentro dos meus pensamentos. Acordo sem fôlego, a pensar que esta mulher, menina, ou feiticeira existe e me conhece. Enquanto bebo um gole de rum para chamar o sono, os olhos dela surgem-me no escuro, tranquilizam-me, dizendo-me sem falar que não devo ter medo. Nos últimos dias, deito-me com algum alento, sabendo que vou sonhar com este ser mágico e desconhecido. Já não são tão desoladores e sem esperança os minutos antes de adormecer.

Meu irmão, guardo os meus tesouros, a única ligação que tenho à vida e à terra que abandonei por uma porção infinita de água. O meu sonho durante a vigília e durante o descanso, a minha terra dentro de um jarro e as cartas que te enviarei, assim que haja ensejo e oportunidade de o fazer.

Reza por mim como eu por ti,
Até que Deus nos reúna, irmão meu,

Afonso.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Carta de Lua Cheia

Os perfumes são indícios. Ao redor, a primavera está eloqüente. Não sei ser índia. Não posso imaginar muito bem a pureza de um amor sem o filtro ideológico, sem o palavrório todo que aprendi, sobre a igualdade entre nós. Tenho receio de parecer reacionária. Confesso que uma vida a dois, sem a invasão das idéias prontas, sem a postura bélica e invasiva, isso me agrada. É um aceno de paraíso. Eu gosto mesmo de dormir com a cabeça encostada no peito de um homem. Gosto que o homem seja forte e que havendo feras e ameaça de ataques, eu possa ficar dentro de casa, livre da chuva, dos granizos e de ventos mal criados. Não gosto da idéia de tirar a pele de um javali para o almoço. Aceito a tarefa de pescar e havendo um fogo aceso, não me incomoda colocar o peixe espetado sobre o calor. Prefiro, neste caso, ser uma mulher das cavernas e vegetariana. Plantar e colher alimentos me agrada. Estou cansada da liberdade que alcancei. Atualmente, pago as contas, não espero que abram a porta do carro para mim, vou ao trabalho, dirigindo, e enfrento o trânsito maluco. Faço coisas que antes eram reservadas aos homens. Ainda não sei trocar a resistência do chuveiro. Não sei como me aproximar dos sentimentos de uma mulher indígena, que vivia numa terra de águas limpas, alguns mosquitos e muitas árvores. Não sei como esta mulher sonha. Não sei como seria o padrão de respiração dela. Mas falar dela, narrá-la, é uma forma de estar lá, de entender o meu cansaço atual. Ah, seria muito bom encontrar um homem forte, decidido, guerreiro. Não nasci para a guerra. Gosto de costurar, tenho jeito para fazer artesanato, tricô e crochê. Não sou sacerdotisa de nada, mas tenho aptidão para os oráculos. Estudo tarô e já tive momentos de grande epifania, ao ler a sorte de algumas pessoas. Detesto dirigir. Detesto o trânsito engarrafado. Estou cansada de usar calça jeans. Vestido solto, bem desenhado, e um par de chinelinhas femininas, ah, isso me agrada hoje. Não vejo nenhum problema em dar um beijo diário no homem que sai para trabalhar e só volta à noite. Monto na caverna um mundo. Trago livros, discos, quadros, papel, canetas, envelopes, meu computador e uma conexão com o mundo. Não quero saber de comício, nem quero ler teses sobre a liberdade feminina. Tenho meu próprio salário mas me agrada a idéia de ter um marido mecenas, que me deixe ser apenas escritora, que me deixe viver à toa. Sem tempo, sem ócio, sem espaço para o silêncio, meu encontro com esta mulher vai sendo adiado e a história não prossegue. Estou à procura de um troglodita esclarecido, e quase que repito a frase que antes me insultava: se ele não me bater, está tudo bem.

domingo, 11 de maio de 2008

5ª Carta - Melancolia

Irmão adorado,

Nos próximos dias deveremos chegar a terra. Espera-nos solo firme, árvores, colinas, e os mantimentos que vamos buscar. Dizem que será breve a nossa estadia. Nem um dia passará antes que voltemos ao mar. Já não enjoo como dantes, mas devo ter o que eles chamam a maleita das saudades de terra. Fico a olhar o horizonte e uma tristeza sem nome me invade os pensamentos. Até as coisas mais ridículas são motivo de melancolia. Tenho saudades da cama dura e estreita onde dormia em Lisboa, tenho saudades de cavar a terra junto à casa de nossos pais, da sede que sentia no pico do sol e de ir buscar àgua ao poço, tenho saudades da sujidade das ruas, dos bancos da taberna. Dizem que isto passa, que daqui a uns meses me crescerão escamas e serei um peixe de calças. Mas nem aprendi a nadar nem o humor de marinheiro me ajuda a enfrentar o dia.

Só hoje aconteceu ser visitado por um pensamento que agora me entristece e confunde. Guardo as cartas que já escrevi neste navio longe do alcance dos olhos. É que sei que te escrevo, que me dirijo a ti, mas que as palavras que te endereço navegam comigo ao sabor das distâncias e das tempestades. O tempo aqui é longo, lento, pesado. E existe algum alento em escrever-te. Mas nem lacre tenho para fechar as cartas. Ficam dobradas dentro de um pequeno baú partido que pedi e me cederam com um riso trocista.

Não posso ficar muito mais tempo a escrever-te. Custa-me ver o motivo do meu desânimo tão claro, em frases que não quero reler. Aceita a desculpa de que tenho de ir trabalhar. Assim que acaba a ceia há que preparar a refeição da manhã. E eu fiz amizade com o marinheiro encarregue da cozinha. Não quero desapontá-lo. Quando estiver com mais força de espírito, hei-de contar-te as anedotas sobre sereias, peixe e gaivotas que ele me tem ensinado. O Estêvão ajuda a olhar para o que me cerca com alguma leveza. O que não é tão mau assim.

Te guarde o anjo do Senhor,
Rezo pela tua saúde, irmão,

Afonso.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Cartas de Lua Minguante

Olho ao redor e tudo é silêncio. Após o ritual, todos se recolheram, exaustos e felizes. Nem mesmo as crianças resistiram ao convite da madrugada. Passo devagar pelas redes e saio em busca de água. A urgência da pele me acelera. Sinto sob meus pés o orvalho delicado. A relva macia, hidratada. O rio segue, sem parar. Ouço a cantiga dos insetos, alguns brilhos dispersos em despedida. Os ruídos conhecidos, o ritmo confortável da vida que conheço tão bem. Entro lentamente nas águas. Vou entregando meu corpo, na esperança de que o calor seja abrandado. Teu rosto é uma imagem insistente. E nem sei direito teu nome nem de onde vens. Sei que sou prisioneira dos teus braços ainda desconhecidos. Este calor é meu desejo implacável. Amanhã teremos outra cerimônia. Muitas mulheres receberão desenhos especiais, serão tatuadas pelos deuses. A floresta grita. Vamos cantar novamente, até que chegue a noite, que ao nos encontrar, exaustas, nos transporte ao sono profundo. No meu desasossego, estarei desperta antes que o dia retorne. Com o pensamento fixado na tua voz, ainda desconhecida. Sonho este idioma em que te expressas. Ouço este material sonoro e minha compreensão se dá em meio ao transe. Amanhã algumas mulheres irão comigo para a cerimônia das visões. O chá que partilharemos pode me levar a seu encontro. Ontem, estive nos seus braços e tudo era uma dança sem fim. Os efeitos da bebida bem preparada amoleceram meus músculos. Disse frases sem sentido. Gemi em êxtase. Entreguei minha virgindade aos teus beijos impacientes. Era preciso manter os olhos fechados. Resguardada de outras visões, acolhi teu corpo preso às minhas pernas. Amanhã nos reuniremos outra vez, outras mulheres, e compartilharemos o chá das delícias. Nós, que sabemos bem o caminho do êxtase.

quinta-feira, 20 de março de 2008

4ª Carta - Náusea

Irmão da minha alma,


Não poderia prever tanto enjôo de onda, tanta tripa em agonia. Os marinheiros de muitas marés e viagens riem com vontade e despropósito da fragilidade do nosso estômago. Alivia um pouco o embaraço de novato do mar poder partilhá-lo com outros aventureiros desprevenidos e inexperientes como eu. O Pedro, que é de Trás-Os-Montes, viu o mar pela primeira vez há uma semana. Tão cedo se assombrou com o seu tamanho e balanço, logo se enfiou nele como um animal de terra apanhado numa noite de tormenta. Ele olha com olhos de medo o horizonte, que é sempre recto, sem sombra de montanha ou colina que seja.

Aqui o papel é quase tesouro. Felizmente abasteci-me em terra de material para te escrever. É duro descascar batatas como se disso dependesse a luz do dia. Trabalha-se muito e muito rápido que há bocas para alimentar e fomes para aplacar. Ainda não houve ameaça de tempestade, a não ser nos meus sonhos agitados, à noite. De resto não consigo dormir o que queria. A caravela não se compadece com a minha necessidade de descanso e balança ainda mais, parece-me, assim que me deito. Não pensei ser tão aborrecido estar onde há apenas homens. Cansam-me algumas das conversas que se repetem como se no momento atrás não se tivessem iniciado contra o que é inédito e útil. Falta-me o riso de uma mulher, o seu cheiro, a mim que não conheço beijo para além do que recordo, da nossa mãe a deitar-nos, providenciando-nos as boas noites. É de mulheres que se fala assim que há ócio e um pedaço de tempo. Mas suspeito que é a ignorância que sustenta tanta bazófia e imaginação. Dir-se-ia que são de outro mundo, muito estranho as fêmeas que aqui só vivem em histórias e piadas.

Mais duas semanas sem ver terra, meu irmão. Mais duas semanas que aqui parecerão uma dúzia. O dia é o vazio onde só vento e desolação azul preenchem algo que se veja. E ainda assim há algo de grandioso no mar, que não é o seu tamanho sem medida. Sendo água, parece ser de vida e hábitos insondáveis. E tem temperamento, humores, zangas e risos. Se tivesse um desses espíritos poéticos e sugestionáveis diria que a espuma é o mar a rir-se de nós, da nossa pequenez e falta de conhecimento do que importa para vencer o medo. E dizem os mais velhos nestas andanças que há ondas maiores que a casca de madeira que nos transporta. E que é tão fria como um susto a água em noites de tempestade.

terça-feira, 18 de março de 2008

Cartas de Lua Minguante

Em qualquer época, a figura de uma mulher, de frente para o mar, com olhar perdido, vai me tocar. Ficarei comovida e terei simpatia com esta cena. Entrarei dentro dela, vestirei as roupas simples e claras, vestes que escondem marcas da dor e da saudade. Esta mulher, que agora incorporo, sabe bem o que é perder. E tem tanta força que é capaz de renunciar, ali, entre uma onda e outra, a tudo que outrora lhe trazia conforto. Dispensa as chinelas e o agasalho, dispensa os adereços e as noites de festas. Dispensa o sabor e a percepção da baunilha, do jasmim em seus exageros noturnos. Seu corpo, alquebrado pela saudade, se põe ereto desafiando o mar. Se o mar estivesse fechado ele ainda estaria aqui, abraçado a suas dádivas, agarrado a seu amor sempre bem disposto. Ele veio, cumprindo a sintaxe dos oráculos. E desfez, em segundos, toda a ilusão de felicidade que era sua vida em harmonia. Antes dele, a tribo, os antepassados, as ervas, a conversa com os deuses, a emoção intraduzível de curar um menino doente. Tudo agora se reuniu num lugar muito distante. Esta mulher, de uma etnia remota e extinta, amou até se perder. E perdida de amor, jogou fora os colares, as tintas desenhando histórias no seu corpo. Perdida de amor, desejou ser outra, desejou aquelas vestimentas sem fim, desejou aquela outra língua desconfortável. Vejo esta mulher e no seu rosto não há lágrimas nem pedido de socorro. É uma mulher reduzindo-se, é uma mulher se entregando. Sem espernear, sem arrancar nenhum fio de cabelo e sem fazer o menor escândalo. Uma mulher tão forte, que convida a morte e lhe dá as mãos. A qualquer momento, seguirá rumo ao norte, que é mar sem fim.

terça-feira, 11 de março de 2008

3ª Carta - Pressa

Meu irmão na carne e em Deus,



O dono da estalagem guardará esta missiva. Ficará com ela e a obrigação de a entregar quando passar o correio. Hoje ouvi-lhe as primeiras palavras amáveis desde que cheguei. Tossiu para aclarar a voz e disse, vou sentir a tua falta, rapaz, vê se tens cuidado contigo. Deu-me uma amigável e dolorosa pancada no ombro, com a sua mão de gigante, e saiu para os seus afazeres.


Decerto adivinhas a boa nova. Consegui lugar e trabalho numa das caravelas que partem em breve. Desejo que saibas que se chama Santa Bárbara o barco, que tem o nome da nossa santa mãe. E quero que sintas, como eu no meu coração, que é deveras boa esta notícia da minha partida.


Não há tempo para aprender a arte de marinheiro. Por isso embarco como ajudante de 3ª categoria. Levo braços e força para bordo, terão préstimo lavando o chão, descascando batatas e demais coisas que a terra dá e as gentes comem, arrumando e esfregando e lavando e carregando. Agora mesmo tenho de ir, são precisas as minhas costas para transportar mantimentos para dentro dos porões.



Vou então, irmão adorado,

Te guardem os anjos,


Afonso.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Carta de Lua Crescente

Eu preciso da moldura mítica. Preciso da moldura dos sonhos. Quero uma paisagem suave. O sol em seus momentos de doçura. Esta terra como um berço esplêndido para o amor. Ele sabe ler as estrelas. E navega em sua companhia. Eu sei ler as marés, o aroma distinto de cada estação que se inaugura. Chove muito e o cheiro doce da chuva boa, este cheiro me avisa da proximidade. Daqui a algumas luas, teus pés encontrarão aqui outra pátria. Sei que teu coração estará aos pulos, oscilando entre o medo e o alívio. Terás fome, sede e desejo de um colo de fêmea. Sei que tens uma fome quase brutal pelo corpo que imaginas. Sei que ao me ver, teu coração cansado vai encontrar força quase inumana para saltar. Mas o sono virá primeiro. Há quantas noites não dormes, meu amor. Tem sido um castigo esta viagem interminável. Já não tens a mínima alegria em olhar para o céu. Nos últimos dias, teus impropérios alcançam todos os deuses. Eu ainda não sei se esta mulher que venho desenhando, saberá com exatidão o cheiro da chuva que precede à chegada daquele homem. Ela, que entende os odores da floresta. Ela, que conversa com os animais. Ela que encontra nas ervas um livro de milagres. Na cerimônia do chá, ao fechar os olhos, quase toca o rosto branco e imberbe deste homem. Sabe que se aproxima o dia da chuva derradeira. E ajeita os cabelos e prepara óleos, enquanto observa as mulheres da tribo, tingindo os panos para a festa.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Cartas de Lua Minguante

Eu quero imaginar o que é ser uma índia. Não uma mulher descendente de indígenas. Uma índia, uma heroína, uma representante do meu passado histórico, pintado em telas e palavras. Eu quero imaginar outra Iracema. Uma prima dela, ou sua irmã mais nova. Pode ser uma índia composta com pedaços de várias tribos, de outros países próximos ao Brasil. Será preciso fazer pesquisas e apresentar uma versão verossímil? Terei que ir à legislação, para saber se o que escrevo está politicamente correto? Quero errar na representação. Vou montar meu retrato de índia. Juntar os pedaços desconexos do que lembro. Pedaços de canções, cenas de filmes, as ilustrações nos meus livros escolares, os quadros no Museu do Ipiranga. Os inúmeros desenhos dos viajantes. Hoje, ouvi o músico do grupo Madredeus, em depoimento a um filme sobre a Língua Portuguesa dizendo algo assim: que nós, falantes desta língua, assumimos nossa força para sentir alegria ou tristeza. E que nós éramos, todos, da mesma substância: a saudade. Esta índia que estou inventando, tem saudade do que ainda não aconteceu. Esta jovem sonha a chegada do seu maior amor. E sonha também o genocídio de seu povo. Não sei o que é ser uma índia. Nunca saberei. Posso compartilhar com ela, meu corpo feminino e nossos dias férteis. Posso entender, porque em mim ainda dói, o que é amar e ter saudade.

quarta-feira, 5 de março de 2008

2ª Carta - Ansiedade

Meu irmão,


Sinto que se aproximam ventos de mudança. Há grande rebuliço nas ruas, tudo é agitação. Duas novas caravelas estão quase prontas e ultimam-se os preparativos que serão costumeiros por estas alturas. Não consigo dormir as horas que o corpo me pede. Tenho sonhado com mulheres que se oferecem em preparos de indecência e luxúria, demónios em forma de mulher que me cantam como sereias e me enlaçam como feras de luxo e tentação. A bestialidade dos meus sonhos tem continuidade nos monstros cuspindo fogo que saem da água como heresias abomináveis; o barco é quase sempre desfeito por tais abominações como uma folha seca nas mãos de uma criança.


Não te quero encher o pensamento de tais figuras, irmão querido. É de resto durante o dia que mais se exalta a minha imaginação. Não de demoníacas tentações ou de bestas invencíveis. O que me ocupa a inteligência é a dúvida. Serão necessários mais homens, que compensem a falta de experiência do mar com a grande elevação da sua coragem? Virá alguém a terra, a mando dos capitães, buscar homens de trabalho e empenho?


Decerto adivinhas a minha decisão, meu irmão e filho da nossa mãe adorada que Deus chamou a si. Já nada me impede a determinação de partir. Nada de mundano me prende a esta cidade, a este Portugal de miséria e de fome. Buscarei a abundância, a riqueza, ou ao menos algo de novo que me alegre a alma. Nunca bateu tão desdemido o meu coração, irmão da minha alma. Sei que sopra forte o vento lá onde não se vê terra nem esperança. E que se levantam as ondas como montanhas, perante o medo dos homens. Ouço as histórias que se contam, nas noites de muitos copos. E digo-te que mesmo que apenas um pouco do que se conta seja verdadeiro, ainda assim é de temer o que o mar e o céu produzem.


Não sei se estas missivas que te dão conta da saúde do meu corpo e da minha alma se irão interromper. Ainda que me custe privar-te das minhas palavras, anseio por hora em que te escreva em alto mar, sem saber quando poderei endereçar-te os meus pensamentos.


Sempre rezando por ti,

te encomendo a Deus,

Afonso.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Conversas de Lua Cheia

Aprendi a ler as estrelas. E sabia o cheiro que o vento trazia junto com os nascimentos e mortes. Desde pequena, meu pai me levava em suas viagens. Aprendi a ler as ervas. E só de olhar para um dos meus irmãos, conseguia imaginar quanto tempo estaria entre nós. Quando Ianá adoeceu, colhi as ervas e trouxe-as, nas mãos de meu pai. Ele me olhou de um jeito novo. Entendi, que a partir daquele momento, os sonhos seriam quase sempre previsões de futuro. E chorei, até o desespero, nas noites em que o futuro se antecipava. Vi a morte de meus irmãos e muitas vezes, em noites de lua cheia, aproveitava a claridade para fugir das minhas visões. Antes de minha mãe morrer, tive o mesmo sonho por quatro noites seguidas. E sempre acordava, no momento mais díficil. Eu e ela estávamos andando na mata. De repente, ela me dizia: filha, tem uma cobra rondando nossos pés. No sonho, eu pegava sua mão e dizia: mãe, não se preocupe, eu vou cuidar da senhora. De repente, ela dava um grito. E eu, por quatro noites, neste momento, acordava. Saía andando pelos arredores da tribo. Na noite em que fui até o final do sonho, uma cobra estranha, de cor amarela, se enrolava nos pés de minha mãe e, vagarosamente, eu via seu corpo desmaiando, até que ela caía no chão e milhares de borboletas a cobriam. Nesta madrugada, encontrei meu pai ao lado dela, dando uma bebida forte. A febre era muito alta e ela entoava cantigas muito velhas. Algumas pareciam pertencer a outra tribo, como se fosse uma língua estrangeira para nós. De manhã, antes mesmo do sol estar firme, ela já havia partido para outro mundo. Depois disso, eu pedi a meu pai para levar embora aqueles sonhos. No seu olhar, a resposta marcava meu futuro. E o medo crescia, como se fosse um bicho malvado, escondido na mata escura.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

1ª Carta - Inquietude

Meu irmão,


Lisboa é uma cidade grande, suja, cheia de pessoas e de tentações. Nesta babilónia parece-me que a grandiosidade está sempre a par da degradação. A rua em que estou a viver é a rua das tabernas, das meretrizes e dos bêbados, das arruaças, da má vida. Por enquanto consigo sustentar-me trabalhando para o dono da estalagem. Faço todo o tipo de trabalhos, desde a carpintaria, que é necessária a cada passo, pois tudo é velho e torto, até à alimentação dos animais. O Martins, como é conhecido por todos, tem três cavalos, numa pequena estrebaria. Ganhei amizade aos animais, que me ouvem os pensamentos que lhes dedico em voz alta.


Daqui até ao rio é um salto. Hoje vi partirem duas caravelas. As mulheres e as crianças ficavam para trás, enquanto os maridos e pais partiam em direcção ao horizonte. Eu não tenho mulher, e parece-me que se partisse, não deixaria para trás coração que se partisse. Tenho-te a ti, irmão, e sei que estás sempre comigo em pensamentos e orações. De noite custa-me adormecer porque imagino o que haverá do outro lado do mar. Que monstros guardarão os segredos do fim do mundo? Diz-se que a água ferve, depois de se passar do ponto que Deus nos permite conhecer, que monstros marinhos engolem as embarcações como se fossem pequenas e indefesas presas, que chove fogo, que o mar acaba num poço do tamanho do inferno. Eu não acredito nestas superstições, irmão querido.


Quando acordo, às 5 da manhã, os últimos marinheiros, em final de noite de bebedeira, voltam aos barcos. O que têm eles que eu não tenha? Que bravura, que caracter têm aqueles bêbados, que eu não tenho? Ouvi falar aqui na rua que, quando há nova caravela a preparar-se para viajar até ao seu destino desconhecido, vêm cá buscar braços fortes, homens de coragem. Já quase decidi, irmão, quando vierem novamente, estarei pronto. Não há aqui nada que me prenda. E eu quero ver o mundo. Como serão as mulheres nesses países distantes?


Deus te guarde a vida e a saúde,

Saudade tua imensa me visita,


Afonso.

Conversas de Lua Nova

Eu era criança e ficava sentada aqui nesta pedra, olhando as mulheres da tribo nos seus afazeres. Uma sensação esquisita me tomava. Eu fazia parte da tribo e ao mesmo tempo via a todos como se fosse de outro lugar. Achava tudo tão bonito. Buscava o colo de minha mãe e dizia: mãe, aqui é um lugar tão bonito. E minha mãe dizia: é, é mesmo. Desde pequena eu via muita gente de outros mundos. Falava com eles. As crianças da tribo tinham um pouco de medo de mim. Fui crescendo na tribo, com uma missão. Eu era uma mulher especial. E já me consultavam para saber das novidades das próximas guerras. Cheguei a prever o ataque de tribos inimigas e tivemos tempo de nos retirar. Meu pai, desde cedo, me ensinava a ler as estrelas. Nas cerimônias do chá, sempre me ajudava a traduzir as visões. Apenas uma, que se repetia obsessivamente, ele não traduzia. Nem comentava. Toda vez que eu descrevia esta visão, ele se levantava, com ar de derrota, e ia embora. Passava dias sem falar comigo. E desde que me ouviu contando a aparição de um homem de pele branca, usando trajes estranhos, começou a fazer um ritual para que eu fosse a sacerdotisa. Na celebração de minha passagem, chorei o tanto que podia chorar. Daquele momento em diante eu estava fechada para ser mãe e mulher. Eu era a guardadora dos segredos da tribo. E meu coração estava selado.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

casa

Meu amor, vim do outro lado do horizonte. Quando estava a chegar, já as nuvens sobre o sol-poente, parou de chover. Na praia, o teu corpo, imóvel. O teu olhar que adivinhei, a conduzir-me o esforço nos remos. Houve tempestade por aqui? Vieram todas as chuvas. Sem parar. Companheiras da canção que eu repetia, dias inteiros, abrigada por todas elas, a me acompanhar. Deixei a vela em baixo. Não podemos confiar em ventos zangados. Devolvi ao mar o fôlego de que nasci. Remei. Sabia que depois das marés te encontraria. O destino dos meus dias era sonhar-te. Vigiava a ti, em tuas viagens, pedindo aos deuses toda a proteção que os céus pudessem oferecer. As noites e os dias eram uma linha toda costurada com o meu amor por ti. Não pude dormir. O mar erguia-se em ondas que me embalaram a vigília. Cuidei da flor que me ofereceste. Ei-la, com gotas de mar por orvalho. Foi o amor vela, farol e leme. E agora tenho as forças suficientes para ancorar o barco que me transportou. E poderemos remar os dois. A distância diluiu-se na espuma. Meu bem, ainda custa-me acreditar que este é o som de tua voz e me é próximo. Quero receber-te, do modo exato como ajeitei a areia, as flores, as ervas, o banho e nosso leito. Meu coração ainda incrédulo confunde tua presença com a miragem de outrora. Recebe os meus beijos, luz do meu amor, minha asa. E vê como a noite começa na proximidade da pele. Banharei o meu cansaço para me deitar em vigor, junto do teu desejo. Quero o toque de tuas mãos no meu vestido, enfeitado de alegrias, véspera de minha pele. Seja meu corpo o chão firme de teu desembarque. Sou a terra para tuas descobertas. Deixemos o barco e a viagem na ondulação do crepúsculo. Quero entrar e ver a tua alegria em aconchego e celebração. Haverá tempo para as histórias e os ecos da saudade. Agora sou todo teu, e nossa a noite que incendiaremos. Siga comigo, vamos de mãos dadas. Quero que mantenhas os olhos fechados. Te levarei para o ninho, construído com material finíssimo. Decorado com as minúcias do meu amor diário. Nossa casa, um céu terreno, onde espalhei substância de estrelas. O teu beijo de canela e hortelã preenche-me o escuro. Deixa que fiquem as velhas sandálias à porta. Sinto já toda a casa em flor, aqui o mar abre-se em frutos. Segura forte a minha mão, que tão longe estivemos um do outro. Amor dos meus sonhos, acalma este fogo sem data, essa ânsia de eras. Dá-me o primeiro beijo que esperei mil vezes. A tua boca é o estuário que sonhei como se me queimasse o céu. Teu beijo me dá o sopro de vida que me anima. Retorno ao mundo, agora existo. Tiro-te o vestido para te vestir da minha sede. Vem, daremos à pele a água doce. Fechei a porta, deixando todas as tormentas lá fora. Vem, na tua carne navegarei. Seja a primeira cascata a da água, de seguida a volúpia será a corrente dos nossos rios. Deste ponto, convido para a retirada, todas as testemunhas de minha saudade. As aves, e as flores, e as feras da noite, as sereias e seus cantos. Vem comigo, meu desejo, meu sustento, meu amor. Que a noite seja a protetora da nossa entrega. Deste lado do desejo, somos inteiros. Vivemos no exercício do amor, artífices abençoados do talento de ser. Basta escutarmos a respiração para que a sintonia com o mundo nos deixe existir, felizes. Planta a tua boca no meu corpo. Não existe o longe, o distante. Estão de partida, o mundo, as guerras e as dores. Minha boca e tua boca têm a sede dos começos. Nos protege o exército de nossos sentidos, em guarda. Fechemos a porta de casa. Tudo que existe seja apenas teu corpo sobre o meu. Aqui na orla da pele, ensaiaremos a vitalidade de todos os sonhos. Fica abolida a fronteira que o sono desenha na areia do dia. Uma onda varreu a dor, deste os nossos ventres até aos ombros da noite. Meu amado, deixemos que esta noite seja feita de celebração e bençãos. Sigamos obedientes ao nosso amor antigo. Bebe do meu prazer como eu nasço do teu. Existir é ser um sorriso no rosto do tempo. Tudo em mim foi feito para te receber. Tudo em mim é teu. Tens aqui, meu amado, o meu corpo. Minha alma e meus sonhos. Todas as vidas que eu tiver, serão sempre para encontrar-te. O mar me leva, me apresento em cada face da lua que se move. O grão do amor, só ele me desenha e encerra. Estamos indo de volta pra casa.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

nativo

como explicar isto de ser o coração o primeiro a avistar terra? terá ele algum dispositivo interno, como as aves migratórias, que o orienta e situa? sei que foi ele a dizer-me, em antecipação e folia, está para breve. disse-me ainda, se pensas que já sabes o que é ser feliz, prepara-te para seres surpreendido. e desde essa altura que o apanho pelos cantos a cantar feliz para si mesmo, de cabeça no ar. responde-me a tudo com um sorriso. habituei-me a achar-lhe piada assim vestido de pateta alegre, deliciado com tudo e mais bem disposto que um dia solarengo. já lhe desculpo esta atitude tão leve, tão grata, que ele exibe com naturalidade, ostensivamente, como se o mundo fosse um lugar maravilhoso para se existir.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

motor

Ainda havia calor na lareira, feita no improviso. Algo como um ninho e repentino vôo. Louças arranjadas para o jantar de ontem. Som repetido das batidas de uma janela quase rouca. Gavetas a meio gesto, de quem saltou sem paradeiros. Sem bilhetes, restava a casa murmurando em idioma extinto. Sandálias, chale saudoso de galízias, anzol, jornal do dia, a saia rodada, caderno forrado por um veludo em névoas, chapéu enfeitado com uma flor que canta: este inventário registra o inteiro desaparecimento. A percussão constante da água em queda, som cortante no toque de um aço horizontal, arma desfeita e sem cortes. Chega o vento e move o corpo das sedas brancas, cortina drapeada. Lençóis tatuados: toda a narrativa ali disposta.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

ateliê

Desfile monótono sob meu olhar perdido. A semelhança de todos os homens e mulheres que eu poderia amar. A todos eu poderia doar porções de caridade. Lavaria os pés, por anos a fio, dos peregrinos e dos solitários. Meu coração estaria inundado de amor e a todos acolheria. Daria atenção para as histórias, ainda que mal contadas. Seria a senhora da consolação. Cobriria, com o manto dos afetos, seus medos e miséria. Morreria em glórias, a milagrosa, dita. Dentro do meu peito, somente eu saberia, da doença crônica e do vazio. Os desejos calados na minha carne, furando a pele, minha alma. O esperado reencontro com teus olhos, que me livrariam da nudez. Sem ti, viajei o mundo todo sem encontrar abrigo. Meu corpo sem sombra e sem descanso. Eu, a amadora e serva de todos, buscando no deserto as águas da vida, que só em ti encontraria.

poesia

no silêncio, todos os elementos do desejo se conjugam numa dança da chuva primeva e brutal. aos céus clamam os pés que batem no solo. os tambores da volúpia, retesados como promessas recentes, marcam o ritmo do coração. como numa galera de nau imaterial, o compasso é ditador. o suor esgota o vigor. o oceano é a cegueira lá fora e as ondas são balanços de enjoo. todas as marés se incendiaram. as asas desfazem-se em sal. na tua ausência, a pele é a concavidade de uma cratera. acordar no meu próprio calor é acordar ao relento. o corpo desperta para a prisão de uma metáfora. sente-se no espelho da sua carne. cansa-se na desconstrução das imagens. emerge, limpo, dos mergulhos na luxúria.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

pegadas

Decalcados, em formato raro, os pés seguiam os teus passos. Antes disso, foi o instante em que abandonei meus brinquedos de areia e desejei surpreender-te. Antecipando o momento, falava a ti, com empolgação. Saltitava próxima da franja irregular, ponto final da assembléia de ondas divergentes. Sentia prazer em ver a barra de minha saia, branca, claríssima e finamente bordada, sendo tingida pela mistura feita de água e partículas ensolaradas. A flecha já existia em planos. O destino, exímio atirador, disposto a desandar aquela manhã iluminada. Tudo ficou parado, e eu quase ouvia a orquestração desastrada de meu corpo. Veneno quente, fio travesso, linha ácida cosendo a dor em cada veia. Outros pés, outros amores. Se tua força concedia felicidade, na minha ausência, seria preciso encontrar o mensageiro, que trouxe dentro de envelopes preciosos, a quimera e seus truques. O decalque dos meus joelhos, levado pela onda. O sal do choro era todo o oceano.

pingo

em noites de maior desaforo, o corpo apetece-se a si mesmo. no escândalo da distância, a pele ecoa o teu nome em silêncio e furor. são as noites em que uivaria à lua, perseguiria o vento ou morderia a espuma das ondas, como um alucinado exercendo-se em imoderação e excesso. não fosse a generosidade conspícua e discreta das mãos, e arderia o meu corpo em desolação e exílio.