terça-feira, 8 de janeiro de 2008

casa

Meu amor, vim do outro lado do horizonte. Quando estava a chegar, já as nuvens sobre o sol-poente, parou de chover. Na praia, o teu corpo, imóvel. O teu olhar que adivinhei, a conduzir-me o esforço nos remos. Houve tempestade por aqui? Vieram todas as chuvas. Sem parar. Companheiras da canção que eu repetia, dias inteiros, abrigada por todas elas, a me acompanhar. Deixei a vela em baixo. Não podemos confiar em ventos zangados. Devolvi ao mar o fôlego de que nasci. Remei. Sabia que depois das marés te encontraria. O destino dos meus dias era sonhar-te. Vigiava a ti, em tuas viagens, pedindo aos deuses toda a proteção que os céus pudessem oferecer. As noites e os dias eram uma linha toda costurada com o meu amor por ti. Não pude dormir. O mar erguia-se em ondas que me embalaram a vigília. Cuidei da flor que me ofereceste. Ei-la, com gotas de mar por orvalho. Foi o amor vela, farol e leme. E agora tenho as forças suficientes para ancorar o barco que me transportou. E poderemos remar os dois. A distância diluiu-se na espuma. Meu bem, ainda custa-me acreditar que este é o som de tua voz e me é próximo. Quero receber-te, do modo exato como ajeitei a areia, as flores, as ervas, o banho e nosso leito. Meu coração ainda incrédulo confunde tua presença com a miragem de outrora. Recebe os meus beijos, luz do meu amor, minha asa. E vê como a noite começa na proximidade da pele. Banharei o meu cansaço para me deitar em vigor, junto do teu desejo. Quero o toque de tuas mãos no meu vestido, enfeitado de alegrias, véspera de minha pele. Seja meu corpo o chão firme de teu desembarque. Sou a terra para tuas descobertas. Deixemos o barco e a viagem na ondulação do crepúsculo. Quero entrar e ver a tua alegria em aconchego e celebração. Haverá tempo para as histórias e os ecos da saudade. Agora sou todo teu, e nossa a noite que incendiaremos. Siga comigo, vamos de mãos dadas. Quero que mantenhas os olhos fechados. Te levarei para o ninho, construído com material finíssimo. Decorado com as minúcias do meu amor diário. Nossa casa, um céu terreno, onde espalhei substância de estrelas. O teu beijo de canela e hortelã preenche-me o escuro. Deixa que fiquem as velhas sandálias à porta. Sinto já toda a casa em flor, aqui o mar abre-se em frutos. Segura forte a minha mão, que tão longe estivemos um do outro. Amor dos meus sonhos, acalma este fogo sem data, essa ânsia de eras. Dá-me o primeiro beijo que esperei mil vezes. A tua boca é o estuário que sonhei como se me queimasse o céu. Teu beijo me dá o sopro de vida que me anima. Retorno ao mundo, agora existo. Tiro-te o vestido para te vestir da minha sede. Vem, daremos à pele a água doce. Fechei a porta, deixando todas as tormentas lá fora. Vem, na tua carne navegarei. Seja a primeira cascata a da água, de seguida a volúpia será a corrente dos nossos rios. Deste ponto, convido para a retirada, todas as testemunhas de minha saudade. As aves, e as flores, e as feras da noite, as sereias e seus cantos. Vem comigo, meu desejo, meu sustento, meu amor. Que a noite seja a protetora da nossa entrega. Deste lado do desejo, somos inteiros. Vivemos no exercício do amor, artífices abençoados do talento de ser. Basta escutarmos a respiração para que a sintonia com o mundo nos deixe existir, felizes. Planta a tua boca no meu corpo. Não existe o longe, o distante. Estão de partida, o mundo, as guerras e as dores. Minha boca e tua boca têm a sede dos começos. Nos protege o exército de nossos sentidos, em guarda. Fechemos a porta de casa. Tudo que existe seja apenas teu corpo sobre o meu. Aqui na orla da pele, ensaiaremos a vitalidade de todos os sonhos. Fica abolida a fronteira que o sono desenha na areia do dia. Uma onda varreu a dor, deste os nossos ventres até aos ombros da noite. Meu amado, deixemos que esta noite seja feita de celebração e bençãos. Sigamos obedientes ao nosso amor antigo. Bebe do meu prazer como eu nasço do teu. Existir é ser um sorriso no rosto do tempo. Tudo em mim foi feito para te receber. Tudo em mim é teu. Tens aqui, meu amado, o meu corpo. Minha alma e meus sonhos. Todas as vidas que eu tiver, serão sempre para encontrar-te. O mar me leva, me apresento em cada face da lua que se move. O grão do amor, só ele me desenha e encerra. Estamos indo de volta pra casa.

8 comentários:

mari celma disse...

Conhecer "Casa" foi o mesmo que retornar no tempo e lembrar do banho de chuva proibido quando na volta do colegio vinha a surpresa dupla de chuva e amor adolescente. Conhecer "Casa" foi um delírio provocado por imagens gradativas: vela,leme, farol...vcs não sabem o poder que possuem com as palavras! Vcs, Carol, Eliana e Nuno vieram para este mundo com um encontro marcado com a palavra! Porque há uma responsabilidade leve em usá-la, um primor em escolhê-la, mas sem a obssesão dor de cabeça de Cabral ou a prolixidade de tantos outros ditos escritores. "Casa" é uma aula de escrita e estilo desprentensiosos...ler esse texto me salvou de um tedioso domingo, me alimentou para a semana que se inicia, me fez ter romantismo novamente! Gracias!

Anónimo disse...

Muitos gostariam de entrar nesta casa, presenciar seus amores, experimentar seus sobores, se entorpecer com os aromas. Uma casa assim, constuída com tanta beleza e intensidade, tinha que sevir como o ninho para um amor não menos belo e intenso. Essa casa convite e refugío, amor e arte só poderia existir em Atlantis.

leve solto disse...

Obrigadíssima pela visita, volte outras vezes....

Excelente seu texto... serei assídua no seu espaço!

Bjs

Mara

Cadinho RoCo disse...

É sublime a sensação de voltar para casa.
Cadinho RoCo

Anónimo disse...

Olá, vim retribuir a visita ao meu blog.
Gostei do seu espaço.

abraços

Ricardo Soares disse...

eliana mara... confesso que conheci seu blog através do blog da "K"... confesso que gostei do seu comentário e confesso que dou autorização pra vc usar o que quiser do que eu escrevi por lá
kiss, ricardo

Ricardo Soares disse...

ahhh... e adorei o que vc escreveu sobre o filme dos irmãos coen...concorco com vc em tudo... volte sempre...adorei sua leitura do filme... kiss
ricardo

Eliana Mara Chiossi disse...

Ricardo, Mara, Liss e Mari:

nesta casa em alto-mar, a palavra primeira é zelo. Talvez a segunda seja: artefacto. E as próximas, desejo de criação, viagem poética pela história.
Gratíssima pelas visitas.
Eliana Mara