quinta-feira, 20 de março de 2008

4ª Carta - Náusea

Irmão da minha alma,


Não poderia prever tanto enjôo de onda, tanta tripa em agonia. Os marinheiros de muitas marés e viagens riem com vontade e despropósito da fragilidade do nosso estômago. Alivia um pouco o embaraço de novato do mar poder partilhá-lo com outros aventureiros desprevenidos e inexperientes como eu. O Pedro, que é de Trás-Os-Montes, viu o mar pela primeira vez há uma semana. Tão cedo se assombrou com o seu tamanho e balanço, logo se enfiou nele como um animal de terra apanhado numa noite de tormenta. Ele olha com olhos de medo o horizonte, que é sempre recto, sem sombra de montanha ou colina que seja.

Aqui o papel é quase tesouro. Felizmente abasteci-me em terra de material para te escrever. É duro descascar batatas como se disso dependesse a luz do dia. Trabalha-se muito e muito rápido que há bocas para alimentar e fomes para aplacar. Ainda não houve ameaça de tempestade, a não ser nos meus sonhos agitados, à noite. De resto não consigo dormir o que queria. A caravela não se compadece com a minha necessidade de descanso e balança ainda mais, parece-me, assim que me deito. Não pensei ser tão aborrecido estar onde há apenas homens. Cansam-me algumas das conversas que se repetem como se no momento atrás não se tivessem iniciado contra o que é inédito e útil. Falta-me o riso de uma mulher, o seu cheiro, a mim que não conheço beijo para além do que recordo, da nossa mãe a deitar-nos, providenciando-nos as boas noites. É de mulheres que se fala assim que há ócio e um pedaço de tempo. Mas suspeito que é a ignorância que sustenta tanta bazófia e imaginação. Dir-se-ia que são de outro mundo, muito estranho as fêmeas que aqui só vivem em histórias e piadas.

Mais duas semanas sem ver terra, meu irmão. Mais duas semanas que aqui parecerão uma dúzia. O dia é o vazio onde só vento e desolação azul preenchem algo que se veja. E ainda assim há algo de grandioso no mar, que não é o seu tamanho sem medida. Sendo água, parece ser de vida e hábitos insondáveis. E tem temperamento, humores, zangas e risos. Se tivesse um desses espíritos poéticos e sugestionáveis diria que a espuma é o mar a rir-se de nós, da nossa pequenez e falta de conhecimento do que importa para vencer o medo. E dizem os mais velhos nestas andanças que há ondas maiores que a casca de madeira que nos transporta. E que é tão fria como um susto a água em noites de tempestade.

terça-feira, 18 de março de 2008

Cartas de Lua Minguante

Em qualquer época, a figura de uma mulher, de frente para o mar, com olhar perdido, vai me tocar. Ficarei comovida e terei simpatia com esta cena. Entrarei dentro dela, vestirei as roupas simples e claras, vestes que escondem marcas da dor e da saudade. Esta mulher, que agora incorporo, sabe bem o que é perder. E tem tanta força que é capaz de renunciar, ali, entre uma onda e outra, a tudo que outrora lhe trazia conforto. Dispensa as chinelas e o agasalho, dispensa os adereços e as noites de festas. Dispensa o sabor e a percepção da baunilha, do jasmim em seus exageros noturnos. Seu corpo, alquebrado pela saudade, se põe ereto desafiando o mar. Se o mar estivesse fechado ele ainda estaria aqui, abraçado a suas dádivas, agarrado a seu amor sempre bem disposto. Ele veio, cumprindo a sintaxe dos oráculos. E desfez, em segundos, toda a ilusão de felicidade que era sua vida em harmonia. Antes dele, a tribo, os antepassados, as ervas, a conversa com os deuses, a emoção intraduzível de curar um menino doente. Tudo agora se reuniu num lugar muito distante. Esta mulher, de uma etnia remota e extinta, amou até se perder. E perdida de amor, jogou fora os colares, as tintas desenhando histórias no seu corpo. Perdida de amor, desejou ser outra, desejou aquelas vestimentas sem fim, desejou aquela outra língua desconfortável. Vejo esta mulher e no seu rosto não há lágrimas nem pedido de socorro. É uma mulher reduzindo-se, é uma mulher se entregando. Sem espernear, sem arrancar nenhum fio de cabelo e sem fazer o menor escândalo. Uma mulher tão forte, que convida a morte e lhe dá as mãos. A qualquer momento, seguirá rumo ao norte, que é mar sem fim.

terça-feira, 11 de março de 2008

3ª Carta - Pressa

Meu irmão na carne e em Deus,



O dono da estalagem guardará esta missiva. Ficará com ela e a obrigação de a entregar quando passar o correio. Hoje ouvi-lhe as primeiras palavras amáveis desde que cheguei. Tossiu para aclarar a voz e disse, vou sentir a tua falta, rapaz, vê se tens cuidado contigo. Deu-me uma amigável e dolorosa pancada no ombro, com a sua mão de gigante, e saiu para os seus afazeres.


Decerto adivinhas a boa nova. Consegui lugar e trabalho numa das caravelas que partem em breve. Desejo que saibas que se chama Santa Bárbara o barco, que tem o nome da nossa santa mãe. E quero que sintas, como eu no meu coração, que é deveras boa esta notícia da minha partida.


Não há tempo para aprender a arte de marinheiro. Por isso embarco como ajudante de 3ª categoria. Levo braços e força para bordo, terão préstimo lavando o chão, descascando batatas e demais coisas que a terra dá e as gentes comem, arrumando e esfregando e lavando e carregando. Agora mesmo tenho de ir, são precisas as minhas costas para transportar mantimentos para dentro dos porões.



Vou então, irmão adorado,

Te guardem os anjos,


Afonso.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Carta de Lua Crescente

Eu preciso da moldura mítica. Preciso da moldura dos sonhos. Quero uma paisagem suave. O sol em seus momentos de doçura. Esta terra como um berço esplêndido para o amor. Ele sabe ler as estrelas. E navega em sua companhia. Eu sei ler as marés, o aroma distinto de cada estação que se inaugura. Chove muito e o cheiro doce da chuva boa, este cheiro me avisa da proximidade. Daqui a algumas luas, teus pés encontrarão aqui outra pátria. Sei que teu coração estará aos pulos, oscilando entre o medo e o alívio. Terás fome, sede e desejo de um colo de fêmea. Sei que tens uma fome quase brutal pelo corpo que imaginas. Sei que ao me ver, teu coração cansado vai encontrar força quase inumana para saltar. Mas o sono virá primeiro. Há quantas noites não dormes, meu amor. Tem sido um castigo esta viagem interminável. Já não tens a mínima alegria em olhar para o céu. Nos últimos dias, teus impropérios alcançam todos os deuses. Eu ainda não sei se esta mulher que venho desenhando, saberá com exatidão o cheiro da chuva que precede à chegada daquele homem. Ela, que entende os odores da floresta. Ela, que conversa com os animais. Ela que encontra nas ervas um livro de milagres. Na cerimônia do chá, ao fechar os olhos, quase toca o rosto branco e imberbe deste homem. Sabe que se aproxima o dia da chuva derradeira. E ajeita os cabelos e prepara óleos, enquanto observa as mulheres da tribo, tingindo os panos para a festa.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Cartas de Lua Minguante

Eu quero imaginar o que é ser uma índia. Não uma mulher descendente de indígenas. Uma índia, uma heroína, uma representante do meu passado histórico, pintado em telas e palavras. Eu quero imaginar outra Iracema. Uma prima dela, ou sua irmã mais nova. Pode ser uma índia composta com pedaços de várias tribos, de outros países próximos ao Brasil. Será preciso fazer pesquisas e apresentar uma versão verossímil? Terei que ir à legislação, para saber se o que escrevo está politicamente correto? Quero errar na representação. Vou montar meu retrato de índia. Juntar os pedaços desconexos do que lembro. Pedaços de canções, cenas de filmes, as ilustrações nos meus livros escolares, os quadros no Museu do Ipiranga. Os inúmeros desenhos dos viajantes. Hoje, ouvi o músico do grupo Madredeus, em depoimento a um filme sobre a Língua Portuguesa dizendo algo assim: que nós, falantes desta língua, assumimos nossa força para sentir alegria ou tristeza. E que nós éramos, todos, da mesma substância: a saudade. Esta índia que estou inventando, tem saudade do que ainda não aconteceu. Esta jovem sonha a chegada do seu maior amor. E sonha também o genocídio de seu povo. Não sei o que é ser uma índia. Nunca saberei. Posso compartilhar com ela, meu corpo feminino e nossos dias férteis. Posso entender, porque em mim ainda dói, o que é amar e ter saudade.

quarta-feira, 5 de março de 2008

2ª Carta - Ansiedade

Meu irmão,


Sinto que se aproximam ventos de mudança. Há grande rebuliço nas ruas, tudo é agitação. Duas novas caravelas estão quase prontas e ultimam-se os preparativos que serão costumeiros por estas alturas. Não consigo dormir as horas que o corpo me pede. Tenho sonhado com mulheres que se oferecem em preparos de indecência e luxúria, demónios em forma de mulher que me cantam como sereias e me enlaçam como feras de luxo e tentação. A bestialidade dos meus sonhos tem continuidade nos monstros cuspindo fogo que saem da água como heresias abomináveis; o barco é quase sempre desfeito por tais abominações como uma folha seca nas mãos de uma criança.


Não te quero encher o pensamento de tais figuras, irmão querido. É de resto durante o dia que mais se exalta a minha imaginação. Não de demoníacas tentações ou de bestas invencíveis. O que me ocupa a inteligência é a dúvida. Serão necessários mais homens, que compensem a falta de experiência do mar com a grande elevação da sua coragem? Virá alguém a terra, a mando dos capitães, buscar homens de trabalho e empenho?


Decerto adivinhas a minha decisão, meu irmão e filho da nossa mãe adorada que Deus chamou a si. Já nada me impede a determinação de partir. Nada de mundano me prende a esta cidade, a este Portugal de miséria e de fome. Buscarei a abundância, a riqueza, ou ao menos algo de novo que me alegre a alma. Nunca bateu tão desdemido o meu coração, irmão da minha alma. Sei que sopra forte o vento lá onde não se vê terra nem esperança. E que se levantam as ondas como montanhas, perante o medo dos homens. Ouço as histórias que se contam, nas noites de muitos copos. E digo-te que mesmo que apenas um pouco do que se conta seja verdadeiro, ainda assim é de temer o que o mar e o céu produzem.


Não sei se estas missivas que te dão conta da saúde do meu corpo e da minha alma se irão interromper. Ainda que me custe privar-te das minhas palavras, anseio por hora em que te escreva em alto mar, sem saber quando poderei endereçar-te os meus pensamentos.


Sempre rezando por ti,

te encomendo a Deus,

Afonso.