terça-feira, 18 de março de 2008

Cartas de Lua Minguante

Em qualquer época, a figura de uma mulher, de frente para o mar, com olhar perdido, vai me tocar. Ficarei comovida e terei simpatia com esta cena. Entrarei dentro dela, vestirei as roupas simples e claras, vestes que escondem marcas da dor e da saudade. Esta mulher, que agora incorporo, sabe bem o que é perder. E tem tanta força que é capaz de renunciar, ali, entre uma onda e outra, a tudo que outrora lhe trazia conforto. Dispensa as chinelas e o agasalho, dispensa os adereços e as noites de festas. Dispensa o sabor e a percepção da baunilha, do jasmim em seus exageros noturnos. Seu corpo, alquebrado pela saudade, se põe ereto desafiando o mar. Se o mar estivesse fechado ele ainda estaria aqui, abraçado a suas dádivas, agarrado a seu amor sempre bem disposto. Ele veio, cumprindo a sintaxe dos oráculos. E desfez, em segundos, toda a ilusão de felicidade que era sua vida em harmonia. Antes dele, a tribo, os antepassados, as ervas, a conversa com os deuses, a emoção intraduzível de curar um menino doente. Tudo agora se reuniu num lugar muito distante. Esta mulher, de uma etnia remota e extinta, amou até se perder. E perdida de amor, jogou fora os colares, as tintas desenhando histórias no seu corpo. Perdida de amor, desejou ser outra, desejou aquelas vestimentas sem fim, desejou aquela outra língua desconfortável. Vejo esta mulher e no seu rosto não há lágrimas nem pedido de socorro. É uma mulher reduzindo-se, é uma mulher se entregando. Sem espernear, sem arrancar nenhum fio de cabelo e sem fazer o menor escândalo. Uma mulher tão forte, que convida a morte e lhe dá as mãos. A qualquer momento, seguirá rumo ao norte, que é mar sem fim.

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito lindo, Eliana. Dose certa nas proporções entre ficção e realidade. Ou não; dose errada, tanto faz... lindo assim mesmo.

Me fez lembrar de todas as canções praieiras de Caymmi. Escolho uma, ao acaso:

"A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais"

Eliana Mara Chiossi disse...

Ah, meu companheiro nesta jornada, como é bom receber isto que você dá: teu ouvido, tua leitura, tua solidariedade.
Escrever sobre esta mulher me leva para lugares incômodos. É impossível lidar com isto sem ser tocada. E encontrar em mim a afinidade íntima com qualquer mulher que amou e perdeu, isso é um desafio.
Faz bem estar acompanhada.

Abraço.

Patty Diphusa disse...

Estarás sempre acompanhada, amiga. Esta não é uma jornada solitária, há muitas mulheres que percorrem o mesmo caminho. Só que seu lirismo as ajuda a entender melhor por onde passam seus sentimentos. Lindo, vc escreve muito bem.

Vou deixar aqui meu email que vc pediu, pattidiphusa@gmail.com

Bjs, nos vemos.

Eliana Mara Chiossi disse...

Patty, desde que vc viajou eu estava mesmo a sua procura.
Vou te escrever logo e conto com sua companhia também.
O que vai me levando a um entendimento melhor do que me habita e pede para sair por escrito. Parece lugar comum, mas me sinto uma mulher habitada.
Beijos,

Redneck disse...

Eliana, fazia tempos que eu não me assentava nestas tuas praias estranhas para mim. Que emoção! Quando li sobre a figura da mulher defronte ao mar, a imagem me remeteu a uma criatura primeva, porém, contemporânea até demais, porque me traduz a imensa busca pela qual estamos todos. O mais difícil é se desfazer das roupas, acessórios e ornamentos. E, quando os fazemos, nus, nos damos. E quando o mar (qualquer que seja, líquido ou sólido) engole isso de nós, a nudez fica evidente e nos retiramos feito adões e evas descobertos. Parabéns pelos textos, lindos. Beijo! P.S. Façamos a ciranda das mãos de três pessoas que, em elo, se ligam a mais três mais três mais três ...

Fátima Sta Rosa disse...

Li,

A lua minguante é a lua da avó, da velha, da sábia, da que já viu tudo de tudo na vida, da que está perto da morte. Só ela pode nos inspirar textos assim. Senti-me irmanada nesse feminino que nos convida à jornada solitária e ao mesmo tempo infinita e misteriosamente compartilhada por tantas mulheres de tantos lugares ao longo do tempo.

Um beijo