terça-feira, 17 de junho de 2008

7ª Carta - Febre

Meu irmão,

É o Telúrio que escreve estas linhas. Meu único amigo aqui dentro, ele é ainda mais desprezado, nas suas virtudes, do que eu. Ele era aprendiz de caligrafista, num mosteiro perto de Braga. Os desígnios da vida juntaram-nos e ainda bem. Deus permitiu que ganhássemos afeição um ao outro, principalmente nesta última semana em que ele cuida de mim, a seguir às suas tarefas. Uma febre muito forte e vómitos malignos me tomaram, como se enviados pelo demónio. Não há mezinha do Tiago cozinheiro que me tire estes calores, não há reza do Tobias que me faça acalmar os enjoos. Dizem que durante o sono eu grito, que digo que não com a cabeça e tremo muito. Há um nome que repito, numa língua desconhecida, que alguns marinheiros que mo ouviram berrar têm medo de pronunciar, como se fosse uma maldição. Eu já fiz o Telúrio prometer que mo repete, se eu voltar a dizê-lo enquanto durmo.

Ontem caí da cama várias vezes. Abanava o barco mais que o costume e eu perdido nos meus delírios. O Telúrio veio encontrar-me no chão, ainda dormindo um sono de alucinado, e berrando que o mar é uma serpente e que a serpente me engole. Lembro-me mal das suas palavras meigas, das suas mãos a levantar-me do chão. Sei que a seguir devo ter dormido melhor. E lembro-me de um sonho. A mulher, a jovem mulher nua que me aparecia em sonhos, voltou a surgir. Falava comigo, mas a sua voz era a voz de quem fala do alto de uma montanha em noite de tempestade. Eu ouvia os sons da sua boca mas não conseguia perceber o que me dizia. Antes de desparecer como a água numa pedra quente, sorriu um sorriso muito calmo, mais velho que o seu corpo pequeno e bonito. Irmão, esta mulher não é um desenho, nem uma estátua, é a primeira mulher que vejo nua. E se é assim a beleza escondida atrás de roupas e tecidos, não encontro razão para a sombra do pecado, ou para a vergonha. Não te sei explicar isto e sei que parece blasfémia, mas àquele corpo as roupas só ofuscariam o esplendor e a pureza.

Quero sossegar-te com a amizade atenta do Telúrio. Sei que estou em boas mãos e que Deus não me abandonou à minha sorte. Peço-Lhe que te guarde como a mim e te envie quem te alivie as dores. Rezo por ti e tenho agora a quem falar da nossa infância, dos campos verdes e da mãe. Chegue a ti a força das minhas orações, já que esta carta se vai juntar às outras, como prenda adiada.

Deus te abençoe irmão querido,
Afonso.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Cartas de lua cheia

É o extrato de um renitente romantismo que me provoca para narrar o encontro entre a índia e o homem branco. É de um gozo antecipado que me alimento. Enquadrar em moldura mítica e onírica uma história de amor, com substância de lenda. Isolar a crueldade implícita neste encontro, decorar o cenário deste amor com os elementos que até hoje constituem minha procura.
Quando descrevo os aromas que ela utilizará, para atrair o homem que está navegando mares bravios, combinação de perfeita conhecedora das ervas e das folhas e das matas, é primeiro a mim que ela fisga. Quando imagino a cena em que ela se banha nas águas do rio, aguardando o dia da sua chegada, é em minha pele que reverbera a delícia de seus hábitos.
Esqueço tudo. Desfaço as camadas de discurso. Abandono as vestes pesadas de ensinamentos de aparência razoável. Quero sair da sombra desta arena. Quero me desfazer das lições de guerra, desaprender esta cartilha bélica entre homens e mulheres.
Gosto de me imaginar prevendo o futuro. Gosto de me entender curadora das doenças do corpo e do espírito. Coloca esta mulher na margem do rio, esguia e apropriada. Sábia leitora, prevendo as alterações climáticas, adivinhando a tempestade antes que chegue. A mim, interessa muito aprender com ela o calendário regido pelas fases da lua. Esta mulher que prepara o chá e a cerimônia de toda a tribo. Elo bem desenhado entre o que há de encantado e a vida diária.
Hoje, esta mulher elabora as bebidas mágicas que irá oferecer para seu homem, que ainda não chegou. Esta mulher que sonha a viagem destemida deste homem, e que prepara o conforto para sua chegada. Ela o vê cansado, exausto. Faminto de porto, faminto de abraços. A rede que vai embalar este homem e seu corpo cansado está sendo preparada há meses. No trançado dos fios, ela deposita amor e cuidados.
Hoje, acordei desejando que esta mulher tome meu corpo e minha alma, que me leve para o reino diáfano do passado, que me ensine as artes de sacerdotisa, que me ajude a decifrar a linguagem das estrelas. Sou eu que a desejo. É minha esta ânsia de possuí-la, de encontrá-la e através dela voltar a ter fé no amor sem palavras, no amor filtrado das palavras vãs, no amor pleno, harmonizado com os ares, com os ventos e com as águas.

6ª Carta - Fôlego

Meu irmão,

Dizem que Deus me deu pouco juízo, que tenho a cabeça nas nuvens. Neste momento em que te escrevo devem estar a contar anedotas sobre a extravagância das minhas ideias. Estou certo que já encontraram mais uma alcunha para acrescentar às que já tenho, como troféus de ridicularia. Gastei algumas das minhas moedas para obter este jarro em que transporto terra. Sim, irmão adorado, por baixo do catre escondo este tesouro de louco. Quero lembrar-me que existe terra. Sujar os dedos com ela, sentir-lhe o cheiro. Dizem-me que serão semanas de mar a separar-nos de novo de terra firme. Tão breve a nossa estadia. E não consegui participar da desenfreada euforia dos outros marinheiros, cada um a procurar um canto onde beber até cair ou enrolar-se com uma mulher a troco de algumas moedas.

Confesso que foi tentação muito forte o cheiro do corpo daquelas mulheres, o atrevimento das suas maneiras, o fogo dos seus cabelos soltos. O Sancho, que agora trabalha comigo na cozinha, trouxe uma saia velha e rota. Com ela faz pantominas, à noite, que divertem os bêbados e atiçam a saudade do que é feminil e tão, tão distante que parece a memória de um sonho. Foi difícil guardar as minhas moedas e a minha honra. Esta última nem sei de que me vale, tão longe estamos de cidade ou lei que nos avise da imoralidade. A ilha só aumentou o tamanho do mar, que me inunda o coração e a alma. E os gritos da bebedeira, misturados com as vozes lascivas das mulheres, fizeram-me desgostar das minhas convicções.

Voltei a sonhar com seres femininos e suas teias de sedução e logro. Há um rosto que me assola. Tem a cara pintada e olhos como olhos de um ser muito velho. Embora tenha cara de menina, parece-me uma velha sábia, conhecedora das forças da natureza e do íntimo dos homens. De todos os corpos pecaminosos que me visitam nos sonhos é o único que está nu. E o único que não procura seduzir-me com danças e cantares. Apenas me fixa o olhar e a alma, como se quisesse entrar dentro dos meus pensamentos. Acordo sem fôlego, a pensar que esta mulher, menina, ou feiticeira existe e me conhece. Enquanto bebo um gole de rum para chamar o sono, os olhos dela surgem-me no escuro, tranquilizam-me, dizendo-me sem falar que não devo ter medo. Nos últimos dias, deito-me com algum alento, sabendo que vou sonhar com este ser mágico e desconhecido. Já não são tão desoladores e sem esperança os minutos antes de adormecer.

Meu irmão, guardo os meus tesouros, a única ligação que tenho à vida e à terra que abandonei por uma porção infinita de água. O meu sonho durante a vigília e durante o descanso, a minha terra dentro de um jarro e as cartas que te enviarei, assim que haja ensejo e oportunidade de o fazer.

Reza por mim como eu por ti,
Até que Deus nos reúna, irmão meu,

Afonso.