quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Conversas de Lua Cheia

Aprendi a ler as estrelas. E sabia o cheiro que o vento trazia junto com os nascimentos e mortes. Desde pequena, meu pai me levava em suas viagens. Aprendi a ler as ervas. E só de olhar para um dos meus irmãos, conseguia imaginar quanto tempo estaria entre nós. Quando Ianá adoeceu, colhi as ervas e trouxe-as, nas mãos de meu pai. Ele me olhou de um jeito novo. Entendi, que a partir daquele momento, os sonhos seriam quase sempre previsões de futuro. E chorei, até o desespero, nas noites em que o futuro se antecipava. Vi a morte de meus irmãos e muitas vezes, em noites de lua cheia, aproveitava a claridade para fugir das minhas visões. Antes de minha mãe morrer, tive o mesmo sonho por quatro noites seguidas. E sempre acordava, no momento mais díficil. Eu e ela estávamos andando na mata. De repente, ela me dizia: filha, tem uma cobra rondando nossos pés. No sonho, eu pegava sua mão e dizia: mãe, não se preocupe, eu vou cuidar da senhora. De repente, ela dava um grito. E eu, por quatro noites, neste momento, acordava. Saía andando pelos arredores da tribo. Na noite em que fui até o final do sonho, uma cobra estranha, de cor amarela, se enrolava nos pés de minha mãe e, vagarosamente, eu via seu corpo desmaiando, até que ela caía no chão e milhares de borboletas a cobriam. Nesta madrugada, encontrei meu pai ao lado dela, dando uma bebida forte. A febre era muito alta e ela entoava cantigas muito velhas. Algumas pareciam pertencer a outra tribo, como se fosse uma língua estrangeira para nós. De manhã, antes mesmo do sol estar firme, ela já havia partido para outro mundo. Depois disso, eu pedi a meu pai para levar embora aqueles sonhos. No seu olhar, a resposta marcava meu futuro. E o medo crescia, como se fosse um bicho malvado, escondido na mata escura.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

1ª Carta - Inquietude

Meu irmão,


Lisboa é uma cidade grande, suja, cheia de pessoas e de tentações. Nesta babilónia parece-me que a grandiosidade está sempre a par da degradação. A rua em que estou a viver é a rua das tabernas, das meretrizes e dos bêbados, das arruaças, da má vida. Por enquanto consigo sustentar-me trabalhando para o dono da estalagem. Faço todo o tipo de trabalhos, desde a carpintaria, que é necessária a cada passo, pois tudo é velho e torto, até à alimentação dos animais. O Martins, como é conhecido por todos, tem três cavalos, numa pequena estrebaria. Ganhei amizade aos animais, que me ouvem os pensamentos que lhes dedico em voz alta.


Daqui até ao rio é um salto. Hoje vi partirem duas caravelas. As mulheres e as crianças ficavam para trás, enquanto os maridos e pais partiam em direcção ao horizonte. Eu não tenho mulher, e parece-me que se partisse, não deixaria para trás coração que se partisse. Tenho-te a ti, irmão, e sei que estás sempre comigo em pensamentos e orações. De noite custa-me adormecer porque imagino o que haverá do outro lado do mar. Que monstros guardarão os segredos do fim do mundo? Diz-se que a água ferve, depois de se passar do ponto que Deus nos permite conhecer, que monstros marinhos engolem as embarcações como se fossem pequenas e indefesas presas, que chove fogo, que o mar acaba num poço do tamanho do inferno. Eu não acredito nestas superstições, irmão querido.


Quando acordo, às 5 da manhã, os últimos marinheiros, em final de noite de bebedeira, voltam aos barcos. O que têm eles que eu não tenha? Que bravura, que caracter têm aqueles bêbados, que eu não tenho? Ouvi falar aqui na rua que, quando há nova caravela a preparar-se para viajar até ao seu destino desconhecido, vêm cá buscar braços fortes, homens de coragem. Já quase decidi, irmão, quando vierem novamente, estarei pronto. Não há aqui nada que me prenda. E eu quero ver o mundo. Como serão as mulheres nesses países distantes?


Deus te guarde a vida e a saúde,

Saudade tua imensa me visita,


Afonso.

Conversas de Lua Nova

Eu era criança e ficava sentada aqui nesta pedra, olhando as mulheres da tribo nos seus afazeres. Uma sensação esquisita me tomava. Eu fazia parte da tribo e ao mesmo tempo via a todos como se fosse de outro lugar. Achava tudo tão bonito. Buscava o colo de minha mãe e dizia: mãe, aqui é um lugar tão bonito. E minha mãe dizia: é, é mesmo. Desde pequena eu via muita gente de outros mundos. Falava com eles. As crianças da tribo tinham um pouco de medo de mim. Fui crescendo na tribo, com uma missão. Eu era uma mulher especial. E já me consultavam para saber das novidades das próximas guerras. Cheguei a prever o ataque de tribos inimigas e tivemos tempo de nos retirar. Meu pai, desde cedo, me ensinava a ler as estrelas. Nas cerimônias do chá, sempre me ajudava a traduzir as visões. Apenas uma, que se repetia obsessivamente, ele não traduzia. Nem comentava. Toda vez que eu descrevia esta visão, ele se levantava, com ar de derrota, e ia embora. Passava dias sem falar comigo. E desde que me ouviu contando a aparição de um homem de pele branca, usando trajes estranhos, começou a fazer um ritual para que eu fosse a sacerdotisa. Na celebração de minha passagem, chorei o tanto que podia chorar. Daquele momento em diante eu estava fechada para ser mãe e mulher. Eu era a guardadora dos segredos da tribo. E meu coração estava selado.