sábado, 9 de fevereiro de 2008

1ª Carta - Inquietude

Meu irmão,


Lisboa é uma cidade grande, suja, cheia de pessoas e de tentações. Nesta babilónia parece-me que a grandiosidade está sempre a par da degradação. A rua em que estou a viver é a rua das tabernas, das meretrizes e dos bêbados, das arruaças, da má vida. Por enquanto consigo sustentar-me trabalhando para o dono da estalagem. Faço todo o tipo de trabalhos, desde a carpintaria, que é necessária a cada passo, pois tudo é velho e torto, até à alimentação dos animais. O Martins, como é conhecido por todos, tem três cavalos, numa pequena estrebaria. Ganhei amizade aos animais, que me ouvem os pensamentos que lhes dedico em voz alta.


Daqui até ao rio é um salto. Hoje vi partirem duas caravelas. As mulheres e as crianças ficavam para trás, enquanto os maridos e pais partiam em direcção ao horizonte. Eu não tenho mulher, e parece-me que se partisse, não deixaria para trás coração que se partisse. Tenho-te a ti, irmão, e sei que estás sempre comigo em pensamentos e orações. De noite custa-me adormecer porque imagino o que haverá do outro lado do mar. Que monstros guardarão os segredos do fim do mundo? Diz-se que a água ferve, depois de se passar do ponto que Deus nos permite conhecer, que monstros marinhos engolem as embarcações como se fossem pequenas e indefesas presas, que chove fogo, que o mar acaba num poço do tamanho do inferno. Eu não acredito nestas superstições, irmão querido.


Quando acordo, às 5 da manhã, os últimos marinheiros, em final de noite de bebedeira, voltam aos barcos. O que têm eles que eu não tenha? Que bravura, que caracter têm aqueles bêbados, que eu não tenho? Ouvi falar aqui na rua que, quando há nova caravela a preparar-se para viajar até ao seu destino desconhecido, vêm cá buscar braços fortes, homens de coragem. Já quase decidi, irmão, quando vierem novamente, estarei pronto. Não há aqui nada que me prenda. E eu quero ver o mundo. Como serão as mulheres nesses países distantes?


Deus te guarde a vida e a saúde,

Saudade tua imensa me visita,


Afonso.

Sem comentários: