sexta-feira, 30 de novembro de 2007

sustento

quando voltei com o peixe, ainda dormias, no meio do tumulto do lençol. fui amanhá-lo. tirei-lhe as escamas e as tripas, cortei-lhe as barbatanas. deixei-o em sal e limão. olho para o peixe e vejo: é um animal. tem olhos de animal. se respirasse poderia olhar para mim. é um animal. eu quando pesco, geralmente pesco apenas um peixe. nesta costa quase todos os que apanho são de tamanho médio. para nós é suficiente um peixe. para mim, sozinho, é mais do que suficiente. olho o peixe, com grãos de sal a decorar-lhe a carne. fazemos parte do ciclo das coisas, teluricamente, diz-me a quietude daquele animal que iremos comer. saio da cozinha para buscar os teus lábios. vou acordar-te com um beijo, antes mesmo de tomar banho. e falar-te do tamanho daquele que escapou.

clássica

Para te ofertar esta dança, aprendi certos gracejos das libélulas. Jeitinho rápido de virar e formar ângulos no ar. Emprestei das borboletas a técnica de voar, sem nenhum peso. Sei manter o corpo alinhado no céu, feito gaivotas. Para que você me veja engraçada, dançarei como os pingüins. Trarei recordações da sua infância, ao dançar com os lencóis sobre o corpo, simulando fantasmas. Sei do teu amor por mim, sinto o calor que abre meu peito toda manhã. Sei também que és sincero. Não vais deixar de me dizer, se algo estiver assimétrico. Todos os gestos devem ser perfeitos, seguindo uma partitura exata, harmonia sem distúrbio, pura beleza. Descarto a primeira dança. A oferta é outra agora. Segues minha coreografia, em sonhos. Lá, no espaço indistinto dos teus desejos, serei Isadora, de pés descalços, cabelos soltos. Meus pés terão asas e meu corpo será o discípulo obediente da tua imaginação. E minha dança, meu presente, será finalmente nossa obra-prima.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

exercício

Se a morte há de chegar, decidi freqüentar suas imediações, treinar o desempenho. Imagino que te encontrarei morto, é em minha direção que a flecha foi disparada. O fio da lâmina, branca, atravessa meu coração desde agora. Meu amor é tanto que se morres hoje, é como se morresse o filho. Dor que nenhuma mãe aprende. Então, posto neste lugar, és meu filho e não te verei morto. Antes, a sabedoria me leva. Então, faço os cálculos para o que fazer com este tempo que me resta. Invento modos de usá-lo, à exaustão, sem qualquer desperdício. Antes de eu morrer, quero usar a vida para ser teu abrigo. E ainda depois. Escreverei cartas para que você as receba, diariamente. Há muito trabalho a fazer. E este trabalho me ajuda a negociar com a morte, dando a ela um prazo aproximado, para que não chegue no improviso, para que não vista suas roupas nervosas. Nada de tragédia e sangue. Morrerei calma, e dirão todos de minha expressão, que era serena. Não vou morrer resistente, com semblante irritado. Tampouco terei ar de quem diz piedade. Não verei morto meu filho, não verei morto meu amado. E essa razão de minha morte a transforma na melhor barganha.

banquete

chegaste com o último esforço dos braços nos remos. quando saltei para puxar o barco para terra, era já o teu aroma que na praia se misturava com a maresia. e não consegui distinguir a tua voz da canção dos pássaros. era o meu nome que lançavas, como o anzol antes de um abraço. e eu fiz-me sustento para a nossa fome, ali mesmo, esquecendo-me da âncora e do decoro. foi com um berro e uma gargalhada que me lembraste que o barco estava a ser roubado pelas ondas. e, sorrateira, fizeste-me tropeçar, assim que a minha tarefa acabava, para te atirares sobre mim, sobre a água. era este o sabor que tardava? o mel salgado dos teus lábios, esta ambrósia, único alimento do amor-banquete? não quiseste desembrulhar as prendas. e ainda brincaste comigo, sem olhar para o espólio da viagem, dizendo que já o tinhas feito. mostrei-te a tatuagem que trouxe e as duas cicatrizes de um trambolhão de que não me posso orgulhar, como aventureiro heróico que não sou, que não fui, naquela encosta menos inclinada que a minha propensão para acidentes ridículos. não te trouxe feridas para lamber, apenas sal, que pedi emprestado à maré.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

feitiço

Eu pressentia tua chegada e ainda menina, iniciei os trabalhos. Aprendia com as matriarcas ao meu redor, rendeira e tecelã. Desde cedo, encantadora das palavras, inventariei as espécies e dei nome a todas elas, meu catálogo e álbum. Descobri a alfazema em meio à oferta de ervas. Aprendi a desejar e me transformava em flores. Recebi ensinamentos sobre banhos, enfeites, criatório de gente e alegrias dos bordados. Se me dessem apenas pedacinhos, retalhos de estampas variadas, erigia então minha cosmogonia. Dança de estrelas, chuvas e vendaval. Antes de avistar teus cabelos compridos, soltos, salpicados de areia e sol, já havia feito a eleição dos aromas. Teus medos, tua insegurança, a sede e ânsia, tudo se dissipava ao contato com a fragrância e a maciez. No preparo do teu travesseiro, deixei uma réplica ao meu dispor. Para os casos de saudade sem remédio.

sede

não é costume escrever postais. surpreendi-me ao esgotar tão depressa tão grande remessa de envelopes. ainda pensei em fazer como se vê nos filmes de época. dobrar a carta e lacrá-la, elegendo-a à condição de envelope. se funciona com o meu coração, ao abrigar o nosso amor, talvez essa técnica, consolidada pelo tempo, encontrasse no anel que me ofereceste selo à altura da ocasião. é cansado e feliz que olho pela janela do avião. nota que me atrevo a dizer feliz em frase sem o teu nome ou um eco de ti. o caminho amadureceu-me os desassossegos. e soube encontrar frutos nas árvores que não plantei. é um homem de olhar menos ansioso e mãos mais calejadas que se aproxima do teu abraço. sei que deixaremos os conta-me como foi e os sabes que na tua ausência para depois. sou como o marinheiro da anedota. perguntaram-lhe qual a primeira coisa que ele fazia ao chegar a casa, depois de longos meses no mar. e ele respondeu que fazia amor com a mulher, apaixonadamente. e a seguir?, quiseram saber. a seguir pouso as malas.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

ébria

Espalhei tuas fotografias pela cama. Percorri cada traço, como se pontilhasse com minhas mãos teu corpo, lábios, sorriso, olhos. Amanhã sei que chegarás e até que o dia amanheça, meu único ofício é esperar. A noite é fria, e me protejo do desamparo dessa cidade estrangeira. O quarto é confortável, paguei uma taxa maior pelo café que receberei no quarto. Ouço nos programas de tevê meu idioma como se fosse outro. Que modo é esse de falar a minha língua? Este vocabulário estranho tem nomes que invadem meu arquivo. E me constrangem, me tornam outra no território que eu supunha conhecer, minha fala materna. O vinho aqui é melhor, mais costumeiro. Ainda faço cálculos para entender o câmbio, meu corpo se diverte com meus enganos. O fuso horário altera o humor. Aceito, então, que minha primeira manhã em Lisboa seja minha referência. Vai anoitecer lá, na outra margem, e as luzes matinais desta cidade estarão em desacordo com meus irmãos. Deixo os países. Volto para você, e nesta cama larga, antes que o dia chegue e um funcionário me avise da tua chegada, meu desejo se espalha e nosso amor já começa.

rodas

A circulação durou até altas horas. Quase sei de cor as vestimentas, os calçados, e alguns gestos. O ritmo das passagens diminui um pouco, e agora consigo ouvir o som da colherzinha batendo na xícara, de uma ou duas mesas ao lado. Lembro da leitura dos mistérios nas borras de café, enquanto a feira era consumida com ruídos. Esse amor já estava previsto. Aquelas manchas, intraduzíveis para mim, anunciavam tua chegada. Minha ressurreição e trégua. E dos acidentes, quem falaria? Onde estaria a escrita das estações solitárias, das noites sem fim, das noites em que nenhuma paz me alcançava? O teu número não atende. Você é agora um dos desaparecidos, e me faz mãe da praça e dos lamentos. A cidade me aguarda. O hotel barato tem a reserva, a penumbra e a cama. Sou só desconforto. Meus olhos olham para nada, meu corpo multiplicado em dores diversas. A roda-gigante gira sem intervalos. Este dia não acaba mais.

primeira carta

meu amor, esperava claridade, uma visão límpida, o contrário de tudo o que é turvo e pantanoso. mas a tua ausência ainda não me permite a lucidez dos despojados. é preciso encontrar o espinho e o seu fulcro de dor, compreendê-lo e aceitá-lo. muita água escorrerá na clepsidra da nossa história. e depois, espero, alucinado e crente, poderei ver a emoção como um rosto no espelho de um lago. perto de ti, é certo, nem sonho compreender, tudo é sentir. é aqui, no planalto do tempo, que vejo as cores do pôr-do-sol e o solo que percorri. e percebo que horizonte pode ser a irregularidade visível. por enquanto, caminhar tem pouco sentido se ao fim do dia sou eu que desaperto as sandálias e lavo dos meus pés o pó que trouxe de longe. e adormecer é poder esquecer que adormeço sozinho. amanhã acordarei para te beijar. e, noutro fuso e contexto, já estarás trabalhando, sabendo que não estou e que o beijo tarda. sonha comigo, que suspeito haver asas para os que não sossegam com a noite. seja o teu dia límpido e feliz. as minhas horas são cheias e ardentes. até breve, minha querida, cor do meu íntimo, amor claro, pássaro do meu sangue.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

estação

O trem me abandonou aqui. Deixei as malas, perto de mim, mas quase abandonadas. Tudo dentro delas é disperso. Tuas cartas, aperto-as, ao meu peito. Esta é toda minha bagagem. O corpo está desgovernado. Sem banho, sem higiene, sem descanso, as roupas cansativas, o cabelo desarmado. Meus pés não têm qualquer romantismo. Há fogo dentro de mim, e medos. Ah, você não há de querer-me, como antes. Tudo é tão perfeito nas nossas cartas. Estou mais velha. Talvez também menos engraçada. Horas demais, nesta viagem. Nenhuma paisagem me interessou neste continente, inaugural para meus olhos. O burburinho das pessoas que sabem para onde vão. Os encontros. Alguns, que esperavam, saem acompanhados. Há risos, choros, movimento. Não quero que você venha. Não há mais tempo para me transformar em estátua. Não saberia para onde voltar. O trem já partiu. Quando você surgir, em qualquer direção desta agonia, só então eu chegarei. Teu abraço trará de volta tudo que sou.

ânsia

tenho sono. o hotel não é acolhedor. o dia foi longo. não falei com ninguém. amanhã um encontro esperado. poderei contar algumas aventuras de viajante. rever as histórias em comum. conhecer o que mudou e o que permanece entre nós, amigos separados pelo tempo e não pela distância, que o coração o transportamos sempre no peito. se me perguntar e mulheres, que tal?, não sei o que lhe direi de ti. conhecer-me-á o embaraço e o silêncio comprometido. talvez uma pancada no ombro ou um riso discreto me ponha num à-vontade cúmplice. direi o teu nome. e pouco mais sei, que se transmita em palavras. antes de mergulhar no sonho que vier, a carta primeira que te escrevo.

ninho


Quando eu era noviça, eles foram cortados, rentes, para me livrar do mal e da vaidade. Escolhi a clausura, enquanto o mundo te levava. As pedras do claustro falavam comigo, ouviam minhas lágrimas. Eu quis me entregar para outros deuses. Usei outras alianças e troquei de nome. Escolhi um deles, sendo a noiva. Os votos me ocupavam e tua ausência devorava menos os meus instantes. Casta, pobre, quieta, uma monja sem abrigo. Aquele Deus precário, que tomei de empréstimo, sabia e me consolava. Deu-me casa, hábito, dias inteiros de serviço. Pecadora assídua, deixei que eles crescessem, como um crime. Soube do teu retorno, quando se ausentou do céu uma estrela que me era familiar. Do alto da minha cabeça, ninho resguardado, soltei-os. Cachoeira dourada. Derramados, entrego nesta bandeja meus cabelos. E parto.

sandálias

enquanto me calço, penso nas incursões nas montanhas em que não estavas, nos sorrisos de felicidade em que não participaste, nos banhos de mar sem o teu corpo nadando perto. esta viagem faço-a sozinho, que é como o mundo me pede que o encare. como era diferente a vida antes de ti. a palavra só não me inspirava medo. tudo era fácil, dado adquirido, segurança. cultivava mesmo uma aura de solitário, tão artificial como genuína. agora conjugo os verbos na segunda pessoa. quero-te ao meu lado quando o dia valeu a pena. quero dizer-te hoje fui feliz. não me apetece esconder as lágrimas, as ruínas, as derrotas. dentro de ti não sei dizer dor, desilusão, expectatica. e mal me afasto uma légua, o chão treme como em eras apocalítpicas. vou sozinho. e tenho já os envelopes para cada dia. receberás os selos de cada país, flores e incenso, especiarias e areia. levo comigo a concha que uma onda trouxe, a meio de um beijo salgado. e não sei ainda dizer distância.

domingo, 25 de novembro de 2007

domingo

E ele, então, descansou. Lavou as mãos, despreocupado. Asséptico, livre de culpas. Quis dormir, deitou-se. Incitou-lhe a réstia de lua, chegando através do vitral. Levantou e andou pela casa, a reconhecer ângulos e cômodos. Percorreu a fileira de livros e nada o interessou. Um chá lhe faria bem, mas somente ela sabia como preparar e servir. A memória trouxe o quadro vívido: era noite, o frio instalado desde há muito. A cama pronta, o filme que veriam juntos mais uma vez. Ela entrou no quarto, com a bandeja reluzindo em dádivas. Chá de maçã, polvilhado com a chuvinha de canela, leite aquecido, pães quentes, as frutas bem arranjadas e as florezinhas colhidas no jardim, agora há pouco. Toalhinha de renda branca, bordada com as suas iniciais, lembranças da noite de núpcias. Ela era a mãe da casa, o alimento da rotina, presença toda fresca, de estrelas. Nada poderia interromper a roda do destino, ele não seria nunca mais o mesmo. Sem ela, toda a criação voltava ao limbo.

sábado, 24 de novembro de 2007

ritual

comprei envelopes. de tamanhos e cores diferentes. lápis, grafite, carvão. uma caneta de aparo. e tinta. em casa tenho papel e desejo. abro as tuas cartas com um desses objectos que servem para abrir envelopes, de que não sei o nome. um movimento preciso, acompanhado de um silvo, ao rasgar-se sem erro o topo do envelope. não quero abrir as tuas cartas rasgando tudo desordenadamente, como um amante apressado e desajeitado. saboreio todos os gestos. e ao escrever-te, uma pequena liturgia dá sentido ao que faço. ajoelho-me debruçado sobre a cama. ponho a nossa música. respiro fundo. e é com o teu olhar pousado sobre o lençol que me dirijo a ti.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

chagas

Abandonemos esta cruz. Esperemos que as ramas se apossem de toda a extensão da madeira velha. Hão de surgir gerânios e graminhas. Vem para os meus braços, e te deixarei soltar o choro. Serás agora meu menino. Com meus panos alvos e macios passearei pela extensão da tua altura, tocando com delicadeza de brisa as tuas feridas. Uma fêmea lambendo os lugares onde virão pousar as cicatrizes, na calma benfazeja, desta dor que te consome. Teu corpo dorido é meu mapa de trabalho, nos breves silêncios e respirações curtas com que me pedes tua salvação. Meu amor transformado em tecido santo, ungüento e milagre.

minérios

De frente para o mar, este é o mirante escolhido para seguir, à espera. Cada dia é uma carta, ou tantas a mais que não recebo. Não tenho notícias e tudo gira em torno dessa fogueira inerte. Mesmo sabendo do mar, que é inconstante e sempre outro, recebo dele algumas fixações. Marés que vazam, lua que mingua, ventos aos redores. Tuas cartas que não chegam, eu as imagino em pilhas, que o tempo transforma em relevos e lhes dá substância. Não sei a medida e calculo a partir do frêmito, das águas más dentro do meu corpo. Todas as cartas que não me envias, se multiplicam. E a espera forma esta frase sedimentada, camadas infinitas de silêncio.

fivela

não trouxe da praia conchas, nem o horizonte, nem gaivotas. trouxe as minhas mãos, que te irão passar a roupa, para que te vistas. os lábios que te irão acordar. ficou lá para que o colhamos, entre a espuma e a areia, o fôlego de mil asas. mapas de sal nascer-nos-ão nos ombros. mergulharemos no azul, sem barbantana ou quilha. e ao chegarmos à praia, escorrendo água e sorrisos, esperar-nos-à a vida. e passando-nos a toalha para que nos sequemos, terá as sandálias na outra mão. calçar-nos-á para o caminho, aconchegando-nos a roupa e beijando-nos a testa.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

bárbara

Nunca é tarde, meu amor. O encantamento é de mil anos. As heras formam o esboço de arqueologias. Planuras que não acabam. Haverá tempo para minha coleção de pétalas, guardadas nos livros de poemas que me dedicas. Tua coleção de selos e países acrescentada. As árvores frutificarão, de sobra. Pão eterno, do trigo vário, bem disposto. Serei madrinha das sereias e tu, treinando lutas ainda, com os dragões. Nunca é demais. Terei outras faces e outros nomes. Viajarás ilhas e no teu cansaço, mulheres te acolherão, para meu desespero e fúria. Tenho ciúme das tuas gerações. Invejo todos os teus disfarces. Pousa tua mão sobre meus lábios, para que eu não amaldiçoe as outras. Já queima em mim, me alerta, a descendência que é teu futuro. Pousa sobre minha testa um beijo que me acalme. Entregue a mim o teu amor sem pressa.

pálpebras

escrevi um poema ainda dormias. a janela aberta sobre o mar. as cortinas dançando na canção do vento. gosto de observar os teus movimentos durante o sono. adivinhar-te os contornos dos sonhos. ontem adormeceste nos meus braços. as tuas pálpebras vibravam, enquanto um sorriso te preenchia o rosto. por momentos apertaste as minhas mãos com mais força. proferiste nomes e sons sem existência no lado em que eu me econtrava. no mundo que atravessavas todas as coisas são criaturas e a imaginação é um maestro brincalhão. as ondas marulhavam o seu múrmurio quando pousei o teu corpo na cama e o meu a teu lado. antes que te abraçasse, aconchegaste o teu sossego ao meu peito. e dormimos assim, entrelaçados no calor. os versos que me nasceram, como orvalho pela manhã, repousam, impronunciados. ouvi o meu nome e acorro ao teu despertar. vamos devolver ao sonho o teor da volúpia.

migração

A encomenda chegou. Aos pulos, depois da caixa aberta, espalhadas pelos cômodos, eram tantas que quase faziam barulho. Gêmeas de si mesmas, em suas taguagens duplicadas. Tão diversas que algumas nem existiam fora de sonhos. Filhas de um deus artesão. Foram convidadas para fazer deste dia um relicário. Procuro jeitos de te agradar. Se faço um contorno em torno dele, do dia que agora começou, instalo teu corpo no centro, ao trono, para receber as honrarias. Minhas companheiras começam o trabalho e voam. Suspendem a trajetória pontuando, mínimas, a orientação da dança. Peças de vidro, retalhos luminosos para tua vaidade. O dia, assim, multiplicado, milimétrico, são todas as maneiras que invento para ser tua. E elas partilham comigo o poder dos vôos.

fantasia

Sem nenhuma pressa, o mar ensina este bordado. Suspendo pelas duas mãos o tecido, faço um gesto dançarino. Braços à larga, coreografia flamenga e o chão está coberto. Tudo agora é trabalho de lisuras. Abro a cesta. Meus olhos indecisos têm apetite, desejam glórias. Rendas, brocados, fitas, pedacinhos de céu, coleção de antiguidades, lembranças do mundo. A superfície azul me espera. Fecho os olhos para me tornar, neste instante, respiração exata e paciente. Para meu amado, a festa das lantejoulas. Aqui será feito um universo de brinquedos, casa perene de alegrias para tua pele. Não usarei a história, nem as bússolas. Este pano é âncora de horizontes. Uma constelação, teu abrigo e mapa. Tenho as mãos seguindo o rumo das marés. Cada onda traça os fios em meu bordado. O desenho é quadro, a seda é tela. Para que esta agulha, que é tua distância, finíssima e incrustrada, jóia definitiva, seja toda a partitura. Para o meu amado, meus cabelos nestas águas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

nuvem

com o meu conteúdo a forma ganha forma. encho o dia com ar, sémen e calor. deixei a obstinação a dormir. deve estar cansada a coitada, trabalha tanto. costas na erva, daqui vejo o céu. os ruídos mais irrequietos emigram, como asas diluindo-se pouco acima do horizonte. não vejo o teu rosto, substituindo-se às nuvens na abóbada celeste, com o tamanho de um sortilégio ou de um milagre. e a tua voz vai abdicando da persistência do eco. o teu cheiro no meu corpo já se misturou com o meu. é assim, sem a sofreguidão da minha mortalidade, que te sinto mais próxima. e deixo de dizer a tua pele, o meu cabelo, o teu olhar, as minhas mãos. não sobrevivem as divisões ou os muros. sem fechar os olhos, vou mergulhando em ti, como cantando de noite o estuário de uma estrela.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

trincheira

Assim como ao cão sem dono dei abrigo, colhi a flor morrendo, para honrá-la em nossa casa. Tua viagem me machucando. Presságios de lua encolhida. Tudo na terra me dizendo coisas, sussurros espalhando medo. A flor estava lá, já derrubada pelas mãos afoitas. Aguardava a barganha, o invólucro e a etiqueta. Pensei que só poderias morrer nos meus braços. Bradei contra a guerra, ladra infame. Trouxe a flor comigo, trazendo a ti, no meu coração em chamas. Precária, sem rumo, brevíssima vida à sua disposição. Este segredo me faz louca. Quanto tempo ainda, para não encontrar ao meu redor a tua voz, os teus encantos, quanto tempo. Vou ao quarto e repasso por vezes inumeráveis o número de paredes, cismando. Que sonho este do qual desperto. Oratório que é pousada de efêmeros e para sempre. A chama que sobrevoa o quarto todo, o incenso e a súplica. A flor suspira, ainda. Sua medida é de passagem. E tu, amor dos meus silêncios, és minha bússola, meu prado. A flor que foi meu cão. A travessia.

a cor

é sinestesia olhar para ti. começo por te tocar com o horizonte que me invades na retina. um dedo ombro acima e colcheias subindo desde o ventre. aroma de nascente. vento comestível. quando os teus lábios improvisam o mapa, já nos caíu a bússola. juntou os seus cacos aos da clepsidra que estilhaçámos ao tropeçar no cristal do quotidiano. o dia perdeu a soberba que o tempo lhe cosia ao dorso. é sol o sol que brilha lá fora. serão raios os dedos de calor em redor da volúpia. eu como alimentando. sou a tua boca. e fazes das tuas ancas uma enseada. todas as âncoras repousam na ferrugem da caducidade. uma jangada ascendeu a altar. e os continentes respiram, vulcânicos, a sobriedade de todas as eras. sabes-me a asa. o nosso cheiro é o cio das marés. e repousamos na corrente em que remam os membros. nasceu-te um estuário. desembarcamos, enfim, enviados pela espuma.

sonho

nascem flores como cascatas circulares e improváveis. a gravidade perdeu toda a gravidade e muito da força. a Björk canta. e não é ela. o corpo tem vários braços e um cocar. impossível deusa indiana que avança desde o coração da Amazónia até ao fulcro do íntimo. o solo dardeja ludicamente as nuvens com gotas de terra. chovemos os dois numa canção telúrica. eis que é já uma onça o ser que me aponta a lua, grávida de um pássaro. e percebo que durmo e que só existe sonhar. sinto o calor do teu corpo. e a fome do meu. imagino-me a sorrir a teu lado. ainda de olhos fechados, ouço-te cantar. e não é a Björk. é o nosso desejo, ritmo das noites que fabricamos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

vigília

Zelo teu sono. Controlo a temperatura e os sobressaltos. Há dias esta febre te ocupa. As ervas fazem um trabalho demorado e tenho medo. Te escuto, te acompanho. Se demonstras que tens frio, rapidamente te aqueço. Se apresentas uma expressão de dor, pouso minhas mãos milagrosas até que tua expressão esteja suave e serena. Recordo o momento em que chegastes, esgotado, roupas esfarrapadas e fome por todos os lados. Eras a figura exemplar de uma ilha devastada. Ao teu redor, fraqueza, ânsias, desistência. Não me destes respostas e minhas perguntas tolas pousaram sobre as pétalas. Na aldeia, era o dia de trocar as flores. Os rituais de colheita e inaugurações. Tudo em volta era uma constelação de ruídos. Cobri os espelhos, fechei as janelas, tapei os seus ouvidos. As sereias da morte dançavam na extensão do jardim. Tua febre, teus calafrios. Teu sono povoado de monstros. Teus sustos. Todo meu corpo uma orquestra. Sem você, nenhuma música, nenhum grito, nada que explique minha ocupação de espaços. Zelo teu sono. Eu, sacerdotisa, fecho os olhos para ver teus sonhos. Apareço nesta tela branca e sussurro que voltes, que sempre estejas.

aposentos

Esta casa nos faz arquitetos. Consideramos as marés e fincamos os mastros, nos pontos cardeais da planta baixa. Estudos diários sobre os ventos e eis a instalação dos moinhos. Ao redor, fios tênues, elásticos, para seguir sem exaltação e sem horrores as desobediências das águas. Ávidos coletores desenhando o interior de cada cômodo. Os cômodos são palcos. A direção do espetáculo é compartilhada. Quando chega minha vez, dirijo os movimentos do teu corpo para os prazeres da minha carne. As naus que passam trazem acenos dos marinheiros mal alimentados, sem zelo e sem higiene, a desejar o frescor desta pousada em alto-mar. Os jardins são suspensos. Temos nossa biblioteca, reunião de todas as nossas astúcias. Nos teus dias de diretor, fazes de mim tua brincadeira preferida. Chama as gaivotas que trazem fios de prata e enfeitam meus cabelos. Esta casa me faz tua. Digo o teu nome. Digo minha fome, que é você, meu homem.

tesouro

A personagem dizia que o artista nunca é pobre. O saldo de minha conta bancária era reservado para gastos úteis. Uso exemplar da noção de poupança. Resguardo para as intempéries, proteção contra os ciclones, falências, barricadas, uma doença grave em família. Lembro daquela mulher de rosto cansado, tão disposta a ser apenas dedicação e entrega. Na pequena aldeia, todos de mãos dadas, cantavam rendendo louvores à lua e ao vinho. Olho os papéis espalhados na minha cama, lápis, bloco de anotações. A nossa colcha colorida, toda desenhada com rosas, agora coberta por cálculos e medidas. Jogo tudo no chão. Vejo o lençol azul, e alguma tatuagem de ontem. Sinais do nosso encontro. Os travesseiros têm seu cheiro. E eu sou apenas desejo. Pelo telefone, abuso dos limites bancários, perco a razão e o dinheiro guardado. Amanhã, antes da tua chegada, esta casa será teu palácio. E eu serei a mais rica de todas as mulheres desta aldeia.

ofélia

Nem sei dizer como cheguei a esta decisão. Sei que houve um momento em que de repente saltei da amurada. Estava doente de tanta saudade. A saudade me habitava, sem tréguas. Tudo em mim doía, queimava. E não havia lugar certo, lugar cômodo, nenhum conforto disponível. Inquietação, queimação no estômago, vazio sem fundo. As águas me levarão até você. Eu só preciso ter força, resistência e fôlego. Nadar movida pelo desejo, pelo não sei quê de ânsia. Ficar aqui, do outro lado da margem, sem ação, sem planos, assim é que não pode ser. Meu desejo vai me guiar. O tempo não passa na sua ausência. Jogar-me ao mar é retornar às circunstâncias, aos acontecimentos. Antes disso, tudo aqui era névoa. Tudo o que me cercava era feito de nuvem. Quero apenas estar em seus braços. É nesse lugar que começa minha vida.

à noite chega o assombro

antes de dormir queixa-se o corpo. altamente inflamável, arde como um imenso pedaço de lenha. berra, irremediavelmente mudo, langor e desejo. olha o lençol, triste e liso, sem marcas ou cheiro do teu corpo. não apetece o banho. fique salgada a pele, celebrando o banho que tomámos juntos. dispo do corpo a roupa e a sofreguidão, preparando-me para não dormir. é a vígilia uma inevitável canção de saudade. ainda que imagine tua a minha mão, que feche os olhos e percorra imagens como flores explodindo, que sussure o teu nome à lua, fico, sozinho, atolado na tua ausência. desato a escrever, como exigindo à sanidade horas extradordinárias. risco folhas com o aparo e o dorso da noite com o espinho da volúpia. desenho e rasgo, mordo os lábios e suspiro, olho o mar pela janela e inspiro fundo. amanhã um telefonema. um abraço. e o mar encarpado dentro de nós.

domingo, 18 de novembro de 2007

decibéis

Se não voltas para casa, vou encomendar a implosão. Dos ladrilhos ao teto, haverá a assepsia de tudo. Cortei os cabelos e fechei os botões dos vestidos. Todos os móveis descobertos, janelas escancaradas. Tudo virá abaixo. A inutilidade da decoração. O acréscimo oleoso das fotografias. Teu lugar na cama. Meus vícios na geladeira. O olhar fixo agora se descuida. Enquadramentos sem memória, feitos para eu me esquecer. Lições de terror. Se não voltas para casa, deixarei uma mensagem que irá aos ares. Pedaços do filme antigo. Na grande cena, no escuro habitado, os objetos flutuam em câmara lenta. Vai cair a casa. Explosão. O mérito é todo nosso. Provisões, assentos, portas, ferrugem, poeira e o cão. Nos olhos do cão, me torno criminosa. Recuo. Mulher, bomba e sustos.

cerimônia

Nenhuma ordem a seguir. Dispensada a combinação das cores e a rigidez dos talheres. Motores de finíssimas alucinações. Suficientes doses de fantasia na paleta diversa, ondulações das cores do céu e do mar. Registro e disseminação dos aromas propícios. Cheiro de terra, memória do pão quente, sinais explícitos dos jasmins beirando a noite. A delimitação usada para compor um cômodo com o qual serão cobertas as quatro paredes. Alegorias, ramagens, tons pastéis, anjinhos e algumas libélulas. Sim, as velas. Todas acesas, moldadas, feito figuras delicadas dos mais conhecidos clichês: velas de coração, tulipas, rosas, pássaros, frutas, joalherias. Efeitos sonoros com o vento: penduricalhos de percussionista. As servas para meu preparo: banho, cabelos, óleos e vestes. Excesso de flores em composição de luxúria. Os morangos óbvios, cuidados, colhidos a pouco. Ao redor da seda, no mais ajustado contorno, pétalas inaugurando tons inúmeros de brancura. Tua rainha, me apresento, com meus olhos de impossível.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

sobre a primeira manhã

Levantei-me cedo, pus a toalha lisa na mesa. Vestígios de banho de mar, na noite passada, nos detritos e areias do meu vestido com a bainha rasgada. Sinais de ontem. As lembranças, ligadas mas com espaços vagos entre si, enfileirando-se como bando de várias gaivotas. Ao meu alcance, a vista das colinas e das ondas, o sol brilhando forte demais, frente aos meus olhos relutantes. Durante a noite teu cheiro me acordou, me deixou desperta e mesmo agora, depois de minha corrida matinal, não posso esquecer que nadei junto ao teu corpo, nosso banho de mar na noite, assinalando um batismo firmado no limite dos grãos de areia cúmplices, sob estrelas fazendo o percurso do céu disposto. Desejo atirar-me em seus braços, outra vez, e tantas mais. Devo vestir-me, pegar o celular junto à cama, encontrar as chaves do carro e deixar o bilhete para teu despertar. E ainda, antes de sair, é preciso lembrar de abrir as janelas, permitir a entrada de vento, pássaros e sons da rua. Para que a beleza de teu corpo não pareça esquecida nesta cama imensa.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

sessão de comunicações

Quero encerrar agora esse inventário. Quase dezesseis horas após ter saído da cama, com medo da chuva e de meus humores, é que encontro seu bilhete. Meu nome escrito com uma tinta preta, grafado por sua letra bem marcada, graúda, espaçosa. Você usou uma das folhas do bloco que ganhamos no congresso. Antes de passar os cremes, observo se há alguma ruga nova. Fecho os olhos e revejo a tarde infantil, quando apenas assinamos a lista de presença e fugimos daquelas comunicações enfadonhas, que tratavam de questões lusófonas e transculturais. Nós éramos, nessa tarde, a expressão exata da lusofonia. Eu, você, nossos países, nossas diferenças. Nossa língua, irmã, foi o mensageiro que nos tornou íntimos, e cúmplices. Não leio. Decido dormir e sonhar com as palavras que aguardo. Amanhã, antes de me aproximar da janela, somente amanhã.

a primeira manhã

levantei-me cedo. abri as janelas e saí. a tempestade durante a noite não me acordou. como habitualmente, só soube da tormenta pelos vestígios: a areia lisa, como uma toalha acabada de pôr numa mesa imensa, e várias franjas de detritos, um pouco acima da bainha da rebentação, como sobrancelhas ligadas entre si, assinalando o alcance das ondas. poucas gaivotas. o sol brilhava perto das colinas, como se relutante ainda em atirar-se ao seu percurso ao longo do céu. corri a minha corrida matinal e nadei o meu banho de mar. foi, no entanto, o duche que me acordou definitivamente. com o chuveiro empurrei os grãos de areia para o ralo. vesti-me e mesmo antes de sair lembrei-me de fechar as janelas e trancar a porta do fundo. o telemóvel ficou esquecido, algures pela casa.