terça-feira, 10 de junho de 2008

6ª Carta - Fôlego

Meu irmão,

Dizem que Deus me deu pouco juízo, que tenho a cabeça nas nuvens. Neste momento em que te escrevo devem estar a contar anedotas sobre a extravagância das minhas ideias. Estou certo que já encontraram mais uma alcunha para acrescentar às que já tenho, como troféus de ridicularia. Gastei algumas das minhas moedas para obter este jarro em que transporto terra. Sim, irmão adorado, por baixo do catre escondo este tesouro de louco. Quero lembrar-me que existe terra. Sujar os dedos com ela, sentir-lhe o cheiro. Dizem-me que serão semanas de mar a separar-nos de novo de terra firme. Tão breve a nossa estadia. E não consegui participar da desenfreada euforia dos outros marinheiros, cada um a procurar um canto onde beber até cair ou enrolar-se com uma mulher a troco de algumas moedas.

Confesso que foi tentação muito forte o cheiro do corpo daquelas mulheres, o atrevimento das suas maneiras, o fogo dos seus cabelos soltos. O Sancho, que agora trabalha comigo na cozinha, trouxe uma saia velha e rota. Com ela faz pantominas, à noite, que divertem os bêbados e atiçam a saudade do que é feminil e tão, tão distante que parece a memória de um sonho. Foi difícil guardar as minhas moedas e a minha honra. Esta última nem sei de que me vale, tão longe estamos de cidade ou lei que nos avise da imoralidade. A ilha só aumentou o tamanho do mar, que me inunda o coração e a alma. E os gritos da bebedeira, misturados com as vozes lascivas das mulheres, fizeram-me desgostar das minhas convicções.

Voltei a sonhar com seres femininos e suas teias de sedução e logro. Há um rosto que me assola. Tem a cara pintada e olhos como olhos de um ser muito velho. Embora tenha cara de menina, parece-me uma velha sábia, conhecedora das forças da natureza e do íntimo dos homens. De todos os corpos pecaminosos que me visitam nos sonhos é o único que está nu. E o único que não procura seduzir-me com danças e cantares. Apenas me fixa o olhar e a alma, como se quisesse entrar dentro dos meus pensamentos. Acordo sem fôlego, a pensar que esta mulher, menina, ou feiticeira existe e me conhece. Enquanto bebo um gole de rum para chamar o sono, os olhos dela surgem-me no escuro, tranquilizam-me, dizendo-me sem falar que não devo ter medo. Nos últimos dias, deito-me com algum alento, sabendo que vou sonhar com este ser mágico e desconhecido. Já não são tão desoladores e sem esperança os minutos antes de adormecer.

Meu irmão, guardo os meus tesouros, a única ligação que tenho à vida e à terra que abandonei por uma porção infinita de água. O meu sonho durante a vigília e durante o descanso, a minha terra dentro de um jarro e as cartas que te enviarei, assim que haja ensejo e oportunidade de o fazer.

Reza por mim como eu por ti,
Até que Deus nos reúna, irmão meu,

Afonso.

3 comentários:

Anónimo disse...

Ô Nuno,

tô quase acreditando que você está nessa caravela mesmo, rapaz... Tá muito verossímil a personagem e bom o texto. Parabéns.

Ah, inevitável não notar a analogia da aventura masculina e da espera feminina...

Anónimo disse...

Desculpe:

inevitável NOTAR.

anarresti disse...

:D

obrigado pelo comentário.
é muito bom termos o feedback de quem nos lê. e este projecto é complatamente aberto aos leitores, que são convidados a participar. por isso criámos o:
olaboratoriodocarteiro.blogspot.com

onde falamos do processo de criação, do desenvolvimento das personagens, do trabalho de escrever as histórias do carteiro. e as ideias dos leitores são bem vindas.

e ainda bem que se nota a ligação entre a viagem da personagem masculina e a espera da personagem feminina. é isso que queremos que aconteça.

abraço,
nuno.