domingo, 26 de outubro de 2008

8ª Carta - Tempestade

Meu irmão,

A morte espreita-me os sonhos, ronda a caravela, agita o mar. Não consigo dormir. Tenho quatro horas para descansar, mas é impossível encontrar sossego, neste balanço infernal. Há água por todo o lado, sinto que tenho as roupas encharcadas desde sempre, a chuva atinge-nos como flechas geladas disparadas por inimigo invisível. A tempestade dura há dois dias, e estamos todos exaustos. Vou voltar mais cedo lá para fora, para combater a tormenta com as forças que me restam. Perdemos três homens, que caíram no escuro das águas. O Telúrio foi um dos que encontrou o fim no profundo do mar. Não me resta esperança de que estas cartas alguma vez cheguem a ti. É difícil escrever, o tinteiro já me caiu por duas vezes e está tudo manchado. Não posso gastar papel desta forma e prefiro não pensar em nada. Vou entregar-me à noite, que estendeu o seu negrume pelo dia, com o conluio de nuvens e ventos.

Reza pela minha alma como eu faço por ti,
Seja o que Deus quiser, que o diabo acordou,
Afonso.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Carta na noite sem lua

Noite sem brilho. Uma coberta lisa de sombra. Céu pesado e definitivo. A espera vai devorando o espaço da alegria. O corpo não encontra pouso. Vejo a tempestade anunciada. Raios soam como disparos, interrompendo a noite sólida. Os sonhos maus me impedem de dormir. A vigília forçada é o único modo de escapar. No espaço dos sonhos, há guerras e violência. Homens armados, caravelas destroçadas. A fúria dos ventos é a voz de deuses ultrajados. Meus pés memorizaram os caminhos. Pressinto sua morte. Tento afastar estas visões. Os animais fazem uma assembléia lúgubre. E soltam seus gemidos de mau agouro. A noite se transforma num livro fácil de ler. Amanhã, na superfície clara próxima do mar, verei o que resta de seu corpo. Talvez morra também e seremos dois viajantes, novos habitantes invisíveis das noites sem brilho.